MP vai até a Justiça por aulas para todas as idades
Arnaldo Neto, Aluysio Abreu Barbosa, Cláudio Nogueira e Matheus Berriel - Atualizado em 02/02/2022 09:00
“Temos uma violação ao direito à Educação com possível adiamento (da retomada das aulas presencias). Nos restam as vias judiciais para garantir que todas as crianças (...) estejam estudando presencialmente”. Esta é a posição da promotora de Justiça Anik Assed, da Promotoria de Tutela Coletiva da Infância e Juventude de Campos, em relação à mudança no calendário escolar para alunos de 5 a 11 anos, conforme anunciado na segunda-feira (31), na reunião do Gabinete de Crise da Covid. O decreto, porém, só saiu na noite dessa terça-feira (1º), horas depois da entrevista dela ao Folha no Ar, da Folha FM 98,3. Nele, o município determina regras distintas para as redes públicas e privadas e possibilita aulas remotas para os estudantes elegíveis para a vacinação infantil. Anik assegura que não há nenhum embasamento para medida, e recorda que o Executivo assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), no ano passado, no qual garantiu que as escolas estariam prontas para retomada das aulas presenciais no início deste ano. Ela também defendeu o passaporte da vacinação e falou sobre a obrigatoriedade de os pais vacinarem os filhos, podendo, inclusive, serem punidos por negarem à criança o direito à saúde, conforme prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Para ela, conforme o MP for recebendo denúncias, será questão de tempo para todas as crianças serem imunizadas.
Promotora Anik Assed
Promotora Anik Assed
Vacinação no Brasil – A gente sabe que o Brasil é um país que tem raízes históricas profundas numa cultura vacinal. Para se ter uma ideia, a resistência à vacinação remonta há muitos anos. A nossa primeira regra jurídica de imposição da vacinação como uma conduta obrigatória em nome do interesse público data de 1832. Já se verificava a vacinação como sendo um procedimento necessário à saúde pública. A vacina é sempre usada a serviço da saúde.
Obrigatoriedade para crianças – Com relação às crianças e aos adolescentes, há previsão expressa no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), no artigo 14 parágrafo 1º, como sendo um direito. Toda criança tem direito às vacinações previstas no calendário nacional, como sendo indispensáveis a atender o direito à saúde. Já existiam outras leis que estabeleciam a compulsoriedade, que preveem a vacinação como um direito. É preciso esclarecer, no entanto, que a compulsoriedade, a obrigatoriedade da vacinação é diferente da vacinação forçada. Não se pode admitir que, num estado democrático de direito, as pessoas sejam seguradas, tenham sua integridade física violada para que, a força, sejam vacinadas. Então, o Supremo Tribunal Federal reconheceu recentemente essa diferença clara entre a vacinação forçada, que não é permitida, evidentemente, no território nacional. Mas, reconheceu a compulsoriedade da obrigação. Para garantir que a vacinação se dê, existem, a serviço da sociedade, regras jurídicas que impõem consequências pela não vacinação.

Atuação do MP – Recentemente, o Conselho Nacional de Procuradores Gerais do país, que envolve o chefe do Ministério Público de cada um dos estados do Brasil, deliberou em nota técnica uma orientação de como o MP deveria atuar na garantia desse direito à vacinação. É recomendado expressamente que os promotores de Justiça atuem de forma resolutiva, de forma empática, procurando atuar para conscientizar os pais da necessidade da vacinação. É importante a gente lembrar também que o direito à vacinação está atrelado a que esteja a vacinação fundada em autorizações sanitárias. No caso do Brasil, a vacinação de 5 a 11 anos já foi autorizada pela Anvisa. Nós estamos legalmente adequados a cobrar o exercício do direito à vacinação. A ideia é que, uma vez identificada a ausência do cumprimento desse direito, os promotores de Justiça e conselheiros tutelares adotem providências no sentido de notificar os pais, de procurar orientá-los no sentido de promover a vacinação, conceder um prazo para que a vacinação seja realizada. Caso isso não se dê e seja verificada negligência, desídia ou qualquer outra questão, então providências mais drásticas precisam ser adotadas, como por exemplo a representação administrativa, porque a violação a um dever inerente ao exercício do poder familiar constitui, pelo ECA, uma infração administrativa. E, todas as vezes em que ela é praticada, sujeita aos seus autores a aplicação de multa de três a 20 salários mínimos, entre outras interpretações legais, dependendo de cada caso.

Carteira de vacinação já era obrigatória – Essa mesma nota técnica que estabelece como obrigação a apresentação da carteira de vacinação, na verdade, reproduz um protocolo que já vem se operando no Brasil desde que o direito à vacinação se tornou uma obrigação dos pais. Então, no ato da matrícula, independente do cenário pandêmico, já era exigido a todos os pais que apresentassem, para o exercício da matrícula, o cartão de vacinação. Por quê? Porque o cartão de vacinação é uma forma de ver se aquela criança está tendo a assistência à saúde garantida pelos pais; além disso, saber se a vacinação está em dia, o que assegura o convívio dela, saudável, com as demais crianças. A obrigatoriedade da apresentação do cartão de vacinação é importantíssima e deve ser cobrada pelos diretores das escolas, seja do setor público ou privado, no ato da matrícula. Mas, é importante destacar que essa mesma nota ressalta que “o descumprimento desse dever inerente ao poder familiar deve ensejar à notificação dos órgãos competentes, em especial do Conselho Tutelar. Não obstante”, e isso a gente precisa deixar claro, “em nenhuma hipótese possa significar a negativa da própria matrícula ou a proibição de frequência escola, em razão do caráter do direito à educação”. É preciso que fique claro para a população que a gente tem aí dois direitos. A gente está falando do direito à saúde, por meio da obrigatoriedade da vacinação, e está falando do exercício do direito à educação, que no Brasil deve ser executado de forma presencial, pelo ensino presencial.

Questão de tempo – O debate que envolve a possibilidade ou não de vacina é um debate que diz respeito ao campo das discussões filosóficas, das discussões ideológicas, mas não diz respeito ao campo das regras jurídicas. As regras são muito claras. É um direito da criança a vacinação, e uma obrigação dos pais. A vacinação das crianças que não foram vacinadas será só uma questão de tempo, até que o Conselho Tutelar e o Ministério Público possam, em cada caso, individualmente, analisar as situações.

Garantia da volta às aulas – A gente vem tratando dessa resistência do poder público municipal em Campos em retornar as atividades presenciais já há algum tempo. É até inacreditável que a gente esteja já em 2022 ainda em torno dessa discussão, a discussão de um direito fundamental, que é o direito à educação, e que no Brasil, pela legislação em vigor, deve ser exercido de forma presencial.

Aulas presencias em 2021 – No ano passado, foi emitida uma recomendação do Ministério Público para que as aulas voltassem presencialmente; recomendação essa que foi acatada pelo poder público municipal, que, por decreto, expressamente autorizou no território de Campos o ensino presencial em todos os setores, público e privado. Então, a gente tem, desde o final do segundo semestre do ano passado, as escolas abertas, as escolas funcionando, quando não estava ainda autorizada a vacinação (de crianças). Essa era a nossa realidade.
Reações – Ontem (segunda), para vocês terem ideia, mesmo antes de o decreto municipal ser publicado, a gente já recebeu demanda da Associação de Pais de Alunos da Rede Privada e já teve notícias, pelo Conselho Tutelar, da mobilização de pais de alunos da rede pública municipal pedindo providências ao Ministério Público para garantir e assegurar que o início do ano letivo se dê na data prevista, no dia 7 de fevereiro, inclusive para as crianças de cinco a 11 anos, porque esse foi o posicionamento do município no ano passado e esse é o posicionamento que recebe respaldo legal. Nós vamos lutar para que isso aconteça.

Precariedade estrutural – Com relação à precariedade da estrutura física das escolas, nós estamos acompanhando as providências que o município vem adotando para corrigir as falhas dessa estrutura. Nós sabemos que esse é um problema que assola todas as escolas das redes públicas espalhadas Brasil afora. Infelizmente, nós temos um país que não oferece às suas crianças espaços ideais para o funcionamento do ensino público. Mas, isso nunca inviabilizou, antes da pandemia, o acesso presencial à educação, e agora não pode inviabilizar, simplesmente porque não existe regra jurídica que permita essa inviabilização; a não ser que a escola tivesse interditada, porque ela oferece realmente risco à saúde pública, pode cair um teto, enfim. Os demais problemas ligados à precariedade da estrutura pública devem ser resolvidos pontualmente. A gente tem lá, ajuizadas na Vara da Infância, a nossa promotoria, mais de 60 ações civis públicas em face do município para corrigir de estrutura física nas escolas. Isso já existe há algum tempo e cada vez aumenta mais.

TAC em vigor – Ano passado, quando houve autorização por parte do município para que todas as escolas voltassem a oferecer as aulas presenciais, a gente percebeu que um número menor foi aberto, da rede municipal de ensino, só 70 escolas. Então, fizemos uma reunião, da qual o próprio chefe do poder público participou. Se propôs a assinatura de um TAC, no sentido de que as incorreções dos espaços minimamente fossem sanadas, para que, no início do ano letivo de 2022, todas as unidades escolares da rede pública estivessem em funcionamento adequadamente. Ainda que longe do ideal, mas em condições mínimas de funcionamento. E a gente procurou acompanhar o cumprimento desse TAC antecipadamente. A gente fez reuniões em dezembro, a gente fez reuniões em janeiro, com a presença e participação do secretário municipal de Educação, a presença dos conselheiros tutelares, aos quais a gente também requisitou que fizessem visitas nas unidades escolares das suas áreas de atuação para ver se as obras estavam sendo realizadas ou não. Quando a gente viu que essas obras estavam atrasadas, no início já deste ano, a gente marcou uma reunião emergencial com o secretário de Educação para demonstrar a nossa preocupação, para que todas as providências fossem antecipadas, e sempre o que a gente escutou do município foi que eles estavam tomando as providências, que as escolas estavam sendo submetidas a reparos e tudo mais. A gente acredita que, a essa altura, as precariedades que ainda se apresentam não devem inviabilizar o acesso das crianças às salas de aula. Elas devem ser corrigidas pontualmente, o Ministério Público vai estar cobrando essa correção. Mas, se deixar toda uma rede pública municipal fechada em nome de precariedade de estrutura pública, nós não vamos abrir nunca essas unidades. O importante agora é que o município honre o compromisso que assumiu por meio do chefe do poder Executivo no TAC: que abra as escolas no início do ano letivo previsto, para todas as crianças.

Campos não é uma ilha – Em que pese o posicionamento das autoridades sanitárias em Campos, que a gente respeita por toda a formação médica e tudo mais, e pelas medidas que vêm sendo aplicadas para contenção da pandemia, com relação à questão das escolas, e é só com relação a isso que a gente se pronuncia nesse momento, Campos não é uma ilha no Brasil, não é uma ilha no estado do Rio de Janeiro. Campos não está sujeita apenas ao entendimento das autoridades sanitárias locais. Existe um controle da pandemia realizado a nível estadual. Para ter as suas aulas suspensas ou o direito à educação vinculado à vacinação ou a qualquer outra medida, Campos teria que estar classificada com risco muito mais elevado do que hoje a bandeira do estado do Rio sinaliza. Então, não há justificativa técnica, científica, ao ver do Ministério Público, considerando a bandeira classificatória do Rio de Janeiro em relação a Campos, que justifique adiamento das aulas em prejuízo ao direito à educação.

Passaporte e educação – A gente reafirma a obrigatoriedade da cobrança do passaporte vacinal de todas as crianças. É um direito da criança a vacinação, e o passaporte é o que expressa o cumprimento ou não desse direito, o atendimento ou não desse direito e o cumprimento, por parte dos pais, desse dever, que é o de oportunizar a vacinação. O passaporte vacinal precisa ser exigido no ato da matrícula. O que a gente volta a repetir é que, uma vez descumprido o dever de vacinar pelos pais, o caminho para responsabilização dos pais pela ausência do cumprimento do dever e da garantia do exercício do direito à vacinação devem ser as autoridades da rede de proteção à criança e ao adolescente, o Conselho Tutelar, o Ministério Público, e não a violação de um outro direito, que é o direito à Educação, direito de estar nos bancos escolares, em sala de aula, assistindo aulas. A gente teve um prejuízo incalculável por esses dois anos praticamente dessas crianças afastadas: o desestímulo ao processo de aprendizado, a evasão escolar, o desinteresse total. A gente que anda pelas ruas de Campos gente vê como há crianças pedindo dinheiro em sinais, como a criminalidade aumentou, como que crianças nos espaços intrafamiliares há vítimas de abusos de todos os tipos: abusos sexuais, violências físicas, violências psicológicas. Os espaços comunitários oportunizam a visibilidade dessas crianças, permitem que esses sinais de sejam identificados pelos professores, pelos coleguinhas, enfim, e que a criança possa ser realmente assistida. O direito à educação oferece um espaço de convívio social. É a escola, muitas vezes, que coloca comida na mesa daquela criança. Às vezes, ele não tem uma refeição, ele conta com a refeição que a escola oferece, com a merenda que a escola oferece. Então assim, são incalculáveis os prejuízos que a ausência da frequência aos espaços escolares causa.

Ações judiciais para garantir as aulas – Para que a gente possa tomar uma posição mais clara em relação às medidas a serem tomadas, é preciso que haja a publicação do decreto, para que a gente possa ter acesso ao texto legal em vigor e aí possa fazer uma análise jurídica das consequências do que lá estiver posto, e então as providências no sentido de decidir por uma ação ou por outra, ou até por uma ação extrajudicial. A gente tinha marcado, por exemplo, para quinta-feira agora (amanhã), uma reunião com o secretário de Educação, com os conselhos tutelares, para mais uma vez avaliar as providências que foram tomadas para o cumprimento do TAC assinado pelo chefe do poder Executivo. Houve o compromisso de que todas as escolas da rede pública municipal estariam aptas para funcionar a partir do início do ano letivo. Aí, o ano letivo é adiado. A gente precisa interpretar adequadamente o texto que não foi ainda publicado para ver os efeitos disso, inclusive como forma de possível descumprimento do TAC. O que eu posso assegurar é que, se houver algum decreto de adiamento que não tenha respaldo legal... E me parece que não há, no cenário fático, respaldo legal para adiamento das aulas com base na necessidade do exercício de vacinação, que não fica impedido por conta das aulas... A gente vai reunir todos os esforços no sentido de, se não extrajudicialmente, judicialmente ver o município compelido a revogar o decreto que visualiza aí esse adiamento. É preciso até destacar o seguinte: esse posicionamento, caso se confirme por decreto, ele está na contramão do cenário nacional. Não há absolutamente nada, nenhuma norma jurídica que respalde o adiamento com base em cenários pandêmicos. A gente sempre procurou o diálogo, tanto é que temos várias reuniões ocorridas. Mas, se não é mais possível o cumprimento do TAC pelo município e ainda temos uma violação ao direito à Educação com possível adiamento, nos restam as vias judiciais para garantir que todas as crianças, da rede privada e da rede pública, estejam estudando presencialmente nas suas escolas o mais rápido possível.

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