30 anos de UENF: experimento de grandeza compartilhada
“Um plano é uma coisa real e as coisas projetadas são experimentadas. Um plano, depois de feito e visualizado, torna-se uma realidade ao lado de outras realidades – não podendo nunca ser destruído, mas podendo facilmente ser atacado”
John Steinbeck
Neste 16 de agosto de 2023 a UENF completa 30 anos. É um momento oportuno para refletir sobre o sentido desta Universidade. Oficialmente, este sentido está fixado no próprio nome da UENF, que carrega a assinatura de seu “pai fundador” Darcy Ribeiro. Não se trata meramente de uma homenagem ao político e intelectual que liderou a criação da Universidade. Mas acima de tudo de uma identidade assumida publicamente com um sentido específico de compromisso e tarefa sobre o papel da Universidade que Darcy Ribeiro defendia.
Qual compromisso e qual tarefa assume a UENF ao definir a si mesma com o nome de Darcy Ribeiro? Esta não é uma questão consensual e fácil e responder. A única resposta consensual e fácil, pelo menos para quem tem o mínimo de contato com as obras e a existência de Darcy, é que não existe nada mais contrário ao espírito criador da UENF do que o culto à personalidade e ao passado. Não estamos falando de uma obra de relevação a ser mantida intacta junto com a imagem cultuada de seu grande artífice. Diria que resposta mais adequada sobre o compromisso e a tarefa da UENF está na direção contrária. Por mais complexo que seja o pensamento de Darcy, podemos dizer que a ideia de uma grandeza compartilhada e projetada pelo povo brasileiro está presente na concepção e na identidade da UENF. O “pai fundador” da nossa Universidade definia os brasileiros como sendo um “povo novo” (Ribeiro, 2006), uma “nova Roma”: forjada nos “moinhos de moer gente” da sociedade colonial, nossa nação, apesar de ainda continuar moendo gente, foi capaz de criar e difundir um sentido de pertencimento que supera os limites da etnicidade comum, suporte da maior parte das identidades nacionais existentes no planeta. A maioria dos brasileiros não se quer descendente de etnia comum, e nem quis inventar uma tradição étnica para chamar de sua, como fizeram tantos outros povos. Nosso sentido de nação não depende de uma unidade étnica projetada no passado. Em vez disso, inventamos uma ideia de povo nacional cuja unidade está ancorada no futuro do destino comum, nos artefatos socioculturais produzidos em ambiente de vasta e intensa diversidade ecológica e cultural e na capacidade de inovação em todas as áreas da vida. O povo brasileiro não é um povo europeu deslocado no além-mar. Não somos continuidade de nenhum dos povos que nos formaram. Ser um “povo novo” significa principalmente isso: não ter o passado e sim o futuro como referência principal. Quando dizia “povo novo”, Darcy também queria dizer “povo do futuro”. Mas o que isso tem a ver com a UENF?
Tudo. A UENF traz a marca da utopia nacional de seu “pai fundador”. Como afirmava recorrentemente, Darcy era um utópico por todos os poros e partes do corpo. Mas para ele, utopia não tinha o sentido de negação da realidade, como era o caso, por exemplo, para Karl Marx. O futuro de uma nação, de um povo e até de uma pessoa é um sonho inventado no presente e que já começa a se tornar realidade no presente. A utopia é um sonho com passos significativos e reais que podemos realizar aqui e agora. O futuro só importa quando ele é adjacente, quando pode ser experimento como realidade em desenvolvimento. A utopia nacional popular de Darcy, por exemplo, não abre mão de um caminho de grandeza econômica, científica, tecnológica, política, militar e cultural. Mas esta grandeza não pode ser nacional se não for compartilhada pelos nacionais, e não pode ser compartilhada se não começar pelo enfrentamento dos problemas concretos vividos pela maioria do povo aqui e agora: a fome, o analfabetismo, a miséria, o racismo, a violência, etc. O futuro sonhado coletivamente e o enfrentamento dos problemas urgentes se reforçam mutuamente.
Não se trata de fazer projeções arbitrárias, mas de imaginar e inventar o futuro com base nas possibilidades, potências e práticas que já existem. A utopia nacional de um país produtivo e próspero, pujante, inteligente, inclusivo e fraterno surge da experiência do que já existe: sem abdicar da crítica feroz e contundente das iniquidades vigentes, ver também o que deu certo como potencial de algo novo que a realidade possibilita inventar. Darcy não foi otimista, ufanista nem ingênuo. Ele não acreditava que o Brasil daria certo apesar de tudo. Podia, pode e continua dando errado em muita coisa. Mas deu certo e continua dando certo em muitas outras. Darcy não recusava a realidade. O que ele recusava era o fatalismo que nega as possibilidades incrustadas na ordem existente. Afirmar que o Brasil pode ser um país grandioso e inclusivo não é negar a realidade nacional, mas sim compreendê-la efetivamente em sua complexidade e ambiguidade. Nem todo país pode sonhar com isso. A maioria dos países possivelmente não pode.
Assim como na utopia nacional, grandeza e inclusão são elementos centrais e inseparáveis no papel e no sentido da UENF. Grandeza é poder e decidir não aceitar certos limites como intransponíveis no próprio desenvolvimento. É poder transcender padrões socioculturais. A grandeza pode ser pessoal e coletiva. A UENF é um projeto de grandeza coletiva que também se desdobra no engrandecimento pessoal. A Universidade não nasceu para ser uma instituição periférica do interior, mas para atuar e alterar a fronteira do conhecimento científico e da inovação tecnológica em diversas áreas capazes de impulsionar o desenvolvimento regional e nacional: Na produção agroindustrial, na biotecnologia, nas engenharias, na administração pública e na organização produtiva, na política social, no recrutamento de elites e profissionais da política, no mundo empresarial, na educação e em muitas outras áreas. A tarefa da UENF é combinar grandeza com inclusão, ou seja, criar grandeza compartilhada.
Darcy nunca separou grandeza de inclusão como hoje se faz em parte dominante dos progressistas e também em setores da UENF. Nestes últimos anos, quando se deixou de praticar o experimento de colocar a Universidade no centro e na fronteira da produção de ciência e tecnologia, houve uma separação entre grandeza e inclusão que trai o sentido e a tarefa da UENF. Grandeza sem inclusão leva ao elitismo incompetente, cego as contribuições da diversidade popular na criação de soluções para os problemas comuns. No final deixa de ser grandeza e se torna mediocridade mal disfarçada de elites raivosas e decadentes. Darcy e a UENF não nasceram para serem elitistas. Mas inclusão sem grandeza, sem engrandecimento individual e coletivo, também não serve (Texeiras/Medeiros, 2022). Incluir em um sistema social que perde competência em sua tarefa mais importante e a para a qual existe é uma inclusão rebaixada, pois bloqueia caminhos da grandeza científica e tecnológica como parte inseparável do desenvolvimento universitário, regional e nacional. Ao comemorar seus 30 anos, faço votos que a UENF decida pela grandeza no lugar do rebaixamento de expectativas que nos faz aceitar um lugar menor no mundo. Sem isso não podemos levar a diante o experimento proposto do Darcy e acolhido oficialmente por todos nós.
John Steinbeck
Neste 16 de agosto de 2023 a UENF completa 30 anos. É um momento oportuno para refletir sobre o sentido desta Universidade. Oficialmente, este sentido está fixado no próprio nome da UENF, que carrega a assinatura de seu “pai fundador” Darcy Ribeiro. Não se trata meramente de uma homenagem ao político e intelectual que liderou a criação da Universidade. Mas acima de tudo de uma identidade assumida publicamente com um sentido específico de compromisso e tarefa sobre o papel da Universidade que Darcy Ribeiro defendia.
Qual compromisso e qual tarefa assume a UENF ao definir a si mesma com o nome de Darcy Ribeiro? Esta não é uma questão consensual e fácil e responder. A única resposta consensual e fácil, pelo menos para quem tem o mínimo de contato com as obras e a existência de Darcy, é que não existe nada mais contrário ao espírito criador da UENF do que o culto à personalidade e ao passado. Não estamos falando de uma obra de relevação a ser mantida intacta junto com a imagem cultuada de seu grande artífice. Diria que resposta mais adequada sobre o compromisso e a tarefa da UENF está na direção contrária. Por mais complexo que seja o pensamento de Darcy, podemos dizer que a ideia de uma grandeza compartilhada e projetada pelo povo brasileiro está presente na concepção e na identidade da UENF. O “pai fundador” da nossa Universidade definia os brasileiros como sendo um “povo novo” (Ribeiro, 2006), uma “nova Roma”: forjada nos “moinhos de moer gente” da sociedade colonial, nossa nação, apesar de ainda continuar moendo gente, foi capaz de criar e difundir um sentido de pertencimento que supera os limites da etnicidade comum, suporte da maior parte das identidades nacionais existentes no planeta. A maioria dos brasileiros não se quer descendente de etnia comum, e nem quis inventar uma tradição étnica para chamar de sua, como fizeram tantos outros povos. Nosso sentido de nação não depende de uma unidade étnica projetada no passado. Em vez disso, inventamos uma ideia de povo nacional cuja unidade está ancorada no futuro do destino comum, nos artefatos socioculturais produzidos em ambiente de vasta e intensa diversidade ecológica e cultural e na capacidade de inovação em todas as áreas da vida. O povo brasileiro não é um povo europeu deslocado no além-mar. Não somos continuidade de nenhum dos povos que nos formaram. Ser um “povo novo” significa principalmente isso: não ter o passado e sim o futuro como referência principal. Quando dizia “povo novo”, Darcy também queria dizer “povo do futuro”. Mas o que isso tem a ver com a UENF?
Tudo. A UENF traz a marca da utopia nacional de seu “pai fundador”. Como afirmava recorrentemente, Darcy era um utópico por todos os poros e partes do corpo. Mas para ele, utopia não tinha o sentido de negação da realidade, como era o caso, por exemplo, para Karl Marx. O futuro de uma nação, de um povo e até de uma pessoa é um sonho inventado no presente e que já começa a se tornar realidade no presente. A utopia é um sonho com passos significativos e reais que podemos realizar aqui e agora. O futuro só importa quando ele é adjacente, quando pode ser experimento como realidade em desenvolvimento. A utopia nacional popular de Darcy, por exemplo, não abre mão de um caminho de grandeza econômica, científica, tecnológica, política, militar e cultural. Mas esta grandeza não pode ser nacional se não for compartilhada pelos nacionais, e não pode ser compartilhada se não começar pelo enfrentamento dos problemas concretos vividos pela maioria do povo aqui e agora: a fome, o analfabetismo, a miséria, o racismo, a violência, etc. O futuro sonhado coletivamente e o enfrentamento dos problemas urgentes se reforçam mutuamente.
Não se trata de fazer projeções arbitrárias, mas de imaginar e inventar o futuro com base nas possibilidades, potências e práticas que já existem. A utopia nacional de um país produtivo e próspero, pujante, inteligente, inclusivo e fraterno surge da experiência do que já existe: sem abdicar da crítica feroz e contundente das iniquidades vigentes, ver também o que deu certo como potencial de algo novo que a realidade possibilita inventar. Darcy não foi otimista, ufanista nem ingênuo. Ele não acreditava que o Brasil daria certo apesar de tudo. Podia, pode e continua dando errado em muita coisa. Mas deu certo e continua dando certo em muitas outras. Darcy não recusava a realidade. O que ele recusava era o fatalismo que nega as possibilidades incrustadas na ordem existente. Afirmar que o Brasil pode ser um país grandioso e inclusivo não é negar a realidade nacional, mas sim compreendê-la efetivamente em sua complexidade e ambiguidade. Nem todo país pode sonhar com isso. A maioria dos países possivelmente não pode.
Assim como na utopia nacional, grandeza e inclusão são elementos centrais e inseparáveis no papel e no sentido da UENF. Grandeza é poder e decidir não aceitar certos limites como intransponíveis no próprio desenvolvimento. É poder transcender padrões socioculturais. A grandeza pode ser pessoal e coletiva. A UENF é um projeto de grandeza coletiva que também se desdobra no engrandecimento pessoal. A Universidade não nasceu para ser uma instituição periférica do interior, mas para atuar e alterar a fronteira do conhecimento científico e da inovação tecnológica em diversas áreas capazes de impulsionar o desenvolvimento regional e nacional: Na produção agroindustrial, na biotecnologia, nas engenharias, na administração pública e na organização produtiva, na política social, no recrutamento de elites e profissionais da política, no mundo empresarial, na educação e em muitas outras áreas. A tarefa da UENF é combinar grandeza com inclusão, ou seja, criar grandeza compartilhada.
Darcy nunca separou grandeza de inclusão como hoje se faz em parte dominante dos progressistas e também em setores da UENF. Nestes últimos anos, quando se deixou de praticar o experimento de colocar a Universidade no centro e na fronteira da produção de ciência e tecnologia, houve uma separação entre grandeza e inclusão que trai o sentido e a tarefa da UENF. Grandeza sem inclusão leva ao elitismo incompetente, cego as contribuições da diversidade popular na criação de soluções para os problemas comuns. No final deixa de ser grandeza e se torna mediocridade mal disfarçada de elites raivosas e decadentes. Darcy e a UENF não nasceram para serem elitistas. Mas inclusão sem grandeza, sem engrandecimento individual e coletivo, também não serve (Texeiras/Medeiros, 2022). Incluir em um sistema social que perde competência em sua tarefa mais importante e a para a qual existe é uma inclusão rebaixada, pois bloqueia caminhos da grandeza científica e tecnológica como parte inseparável do desenvolvimento universitário, regional e nacional. Ao comemorar seus 30 anos, faço votos que a UENF decida pela grandeza no lugar do rebaixamento de expectativas que nos faz aceitar um lugar menor no mundo. Sem isso não podemos levar a diante o experimento proposto do Darcy e acolhido oficialmente por todos nós.
Referências:
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo: Companhia de Bolso, 2006.
TEXEIRA, Carlos Sávio Gomes/MEDEIROS, Tiago. A igualdade como problema, a grandeza como solução. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. V. 489, n. 183, p. 207-234, 2022.