A Campos que ainda diz Anauê!
Edmundo Siqueira 24/02/2024 19:49 - Atualizado em 24/02/2024 20:06
“Causou dolorosa e profunda impressão no espírito público”. Foi como iniciou a matéria de capa do jornal Diário Carioca, em 17 de agosto de 1937. Embora fosse um periódico que circulava principalmente na capital, toda primeira página foi dedicada a um comício que aconteceu em Campos dos Goytacazes, na praça São Salvador, dois dias antes. A mesma decisão editorial fez o Correio Paulistano, e tantos outros veículos no país.


O comício foi organizado pelos Integralistas — versão brasileira do fascismo italiano e de seus similares europeus, com base na Doutrina Social Católica e liderado pelo jornalista Plínio Salgado. Deixando 12 mortos e dezenas de feridos, o evento nasceu dos integrantes de um forte núcleo integralista que havia em Campos, que escolheu a principal praça da cidade, São Salvador, como palco.

Segundo relatos dos jornais do período, e de outras fontes históricas, o tiroteio teria tido origem após um confronto entre a polícia e os integralistas, onde os oradores do movimento se recusaram em parar as ofensas públicas.
Capa do Jornal Correio Paulistano de 17 de agosto de 1937.
Capa do Jornal Correio Paulistano de 17 de agosto de 1937. / https:/memoria.bn.br/
Capa do Jornal Diário Carioca de 17 de agosto de 1937.
Capa do Jornal Diário Carioca de 17 de agosto de 1937. / https:/memoria.bn.br/


A Ação Integralista Brasileira (AIB) tinha encontrado um terreno fértil em Campos para divulgar sua ideologia. Para formar o núcleo, quatro anos antes do comício, vieram à cidade o próprio Plínio Salgado e Raymundo Padilha, líder integralista no Estado do Rio de Janeiro. Plínio e Padilha conseguiram levar ao Liceu uma grande quantidade de campistas que ouviram atentamente os ensinamentos fascistas da AIB.

Líder máximo do Integralismo, Plínio Salgado.
Líder máximo do Integralismo, Plínio Salgado. / Reprodução
Plínio Salgado não era exatamente um homem carismático. Franzino, de estatura mediana, cabelo e bigode pretos e aparados, confundia-se com qualquer brasileiro médio dos anos 1930. Mas aprendeu a usar a retórica e uma oratória convincente, e usava justamente de sua aparência comum para convencer e criar empatia. Era um homem do povo, falando o que muitos queriam ouvir, de uma forma organizada e ideologizada. E muitas vezes agressiva.


A ressonância que Plínio conseguiu em Campos foi baseada no discurso de que era preciso lutar contra a “revolução vermelha que iria assolar os lares, espalhando o ateísmo e desapropriando os bens das famílias campistas”. O líder da AIB sabia que era preciso, como em todo discurso fascista, reforçar o medo e criar um inimigo comum, seja externo ou interno.

Campos de ontem e de hoje

A mesma frase dita no Liceu em 1933, possivelmente encontraria eco na sociedade campista de 2024. Mais de 90 anos depois, o lema integralista “Deus, Pátria e Família” — repetido ipsis litteris pelo movimento bolsonarista iniciado em 2018 — pode ser encontrado facilmente em adesivos fixados em automóveis estacionados ao redor da mesma praça da chacina promovida pelo comício integralista de 1937.

Na mesma matéria de capa do “Diário Carioca” de 17 de agosto de 1937, o editorialista chama os integralistas de “grupo de agentes provocadores sem autoridade moral e intelectual para aspirar ao governo da nação”, e que desconhecendo a realidade brasileira limitavam-se a “copiar os métodos de usurpação dos nazistas e fascistas”.
Integrantes da Ação Integralista Brasileira
Integrantes da Ação Integralista Brasileira / https:/memoria.bn.br/
Não por coincidência, no início da década de 1930, Campos dos Goytacazes passava por uma grave crise econômica relacionada aos preços do açúcar e a dificuldade de adaptação às novas tecnologias que o setor demandava, inclusive em exportação. A cana era o principal produto do município e movimentava não apenas engenhos e proprietários rurais, mas também o comércio.

Era preciso dar respostas à crise, e o modelo político-social campista estava em xeque. As oligarquias locais estavam sendo contestadas, e o jogo de poder local movimentava suas peças. Dois grupos disputavam o poder em Campos: os integralistas e os comunistas. Porém, a elite econômica e social da cidade era adepta às ideias fascistas de Plínio Salgado, e os comunistas não passavam de um pequeno grupo, apesar de barulhento.
AIB no Solar dos Airizes, nos anos 1930.
AIB no Solar dos Airizes, nos anos 1930. / Reprodução


Esse cenário de disputas e radicalidades propiciou o trágico comício na praça São Salvador. A agressividade dos integralistas se intensificou após um evento promovido por forças democráticas de Campos, onde foi exposto a truculência e ideias extremistas propostas pelo Integralismo. Em praça pública, os democratas denunciavam o perigo do extremismo e as acusações que sofriam, sendo chamados de “ladrões” e “usurpadores do povo”. A corrupção era usada como elemento para produzir ódio, especialmente na classe média, sendo típico dos movimentos fascistas.

Anauê!

Uma parte significativa de Campos não fez as pazes com seu passado, e outra grande parte o desconhece. A escravidão foi um elemento central da construção da realidade urbana e rural de Campos enquanto ela se constituía, mesmo depois dos tempos de Império.

A cidade dependia da produção vinda da cana-de-açúcar e se acomodou em um sistema que nutria o comércio e o casario colonial na área central, e mantinha a periferia nas áreas rurais, comandadas por grandes fazendas que também ofereciam em suas sedes serviços públicos como maternidades e escolas.

Essa relação de dependência e acomodamento, perpetuada pelo petróleo alguns anos depois da queda das usinas, criou uma cidade pouco criativa e intelectualmente preguiçosa. A baixa valorização do patrimônio histórico que foi deixado desses ciclos econômicos demonstra que não houve esforços de autoconhecimento da sociedade campista, aliados a processos de exclusão da população periférica.

Em uma cidade que não se reconhece, o conservadorismo é sinônimo de reacionarismo. E nesse cenário que se manteve, ideias autoritárias facilmente florescem, onde o saudosismo de “tempos áureos” pode ser usado para fazer com que “Campos seja grande outra vez”.

O integralismo tinha vários símbolos, e seus integrantes além de usarem camisas verdes (como os “camisas pretas” do fascismo italiano), com faixas nos braços com o Sigma () estampado (como a suástica nazista), se cumprimentavam com a saudação “Anauê!”, com o braço levantado em riste, supostamente repetindo um ritual indígena que traduziria “anauê” por “sou teu amigo”.
Na Campos atual, onde 63,14% dos eleitores decidiram votar em Bolsonaro em 2022, mesmo depois da condução da pandemia e dos arroubos autoritários, ainda se pode ouvir “anauês”.

Anauê atual: Membros do movimento neointegralista se reúnem no Vale do Anhangabaú, em São Paulo, em 2019.
Anauê atual: Membros do movimento neointegralista se reúnem no Vale do Anhangabaú, em São Paulo, em 2019. / Foto: Hélvio Romero / Estadão Conteúdo / AE

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