Novela, Carnaval, religião e um gole de cachaça
Edmundo Siqueira 15/02/2024 18:59 - Atualizado em 15/02/2024 19:02
Existe um tipo de brasileiro que torce o nariz quando ouve falar em Carnaval e novela. Faz cara de nojo, e com isso se sente superior. Quer se diferenciar do folião noveleiro, que sai no bloco de rua numa visível felicidade catártica, que ele se recusa a sentir para não se igualar.

É preciso fazer uma diferenciação aqui: não é todo brasileiro que não gosta de Carnaval e novela que tem essa soberba infundada. Há os que não gostam mesmo, e ponto. Questão de gosto, de escolhas de vida. Mas esses não se confundem com o tipo preconceituoso da cara de nojo. São distintos.

A questão é que Carnaval e novela fazem parte da construção do Brasil, principalmente depois da redemocratização, do país que a Nova República (re) fundou com a Constituição Cidadã de 1988. Existe um caldo, um magma que forma a identidade do brasileiro, aquilo que faz que nos identifiquemos como semelhantes, parte de uma nação. Como quando se ouve o verso “quando olhei a terra ardendo…”, da música “Asa Branca”, de Luiz Gonzaga. É difícil um brasileiro que não saiba continuá-lo.

Esse magma, assim como todos, se constitui de uma fusão de sólidos, líquidos e materiais rochosos, que se fundem para formar algo com identificação; específico. Mesmo que não seja homogêneo, algo que não é mesmo a função do magma, mas sim a ideia de fundir-se em uma heterogeneidade que se identifica em alguns fatores.

A formação desse elemento da natureza se dá pela temperatura, pressão e composição. Nas relações humanas acontece o mesmo: forma-se um grupo, uma sociedade ou uma nação a partir de um equilíbrio entre esses três fatores — que nem sempre acontece de forma harmoniosa — seja na natureza ou entre humanos.

Carnaval e Religião

Mesmo o brasileiro soberbo que quer se diferenciar está sujeito aos contornos que esse “magma” cria. Um dos exemplos é a religião, e o Brasil é um país religioso, inegavelmente. Religiões predominantemente cristãs que convivem desde que os povos originários foram expulsos dessas terras, com sua cultura suprimida por um misto de catolicismo europeu e religiões de matriz africana. Em um Brasil diverso e imenso, outras tantas manifestações religiosas se apresentaram depois disso.

Sequer o Carnaval foge dessa fusão. A festa popular acontece 47 dias antes da Páscoa, que por sua vez é definida pelo equinócio vernal e pela lua cheia depois dele. Como são ciclos, Carnaval e Páscoa podem acontecer em dias diferentes a depender do ano. Esses cálculos foram definidos no “Concílio de Niceia”, no ano de 325, primeiro evento promovido pela Igreja para discutir a fé cristã.

As manifestações desse Brasil profundo ficam mais visíveis no Carnaval, na medida que ficam mais abrangentes. Quando todo o país respira Carnaval, seja por gosto ou por imposição da maioria, a essência de um Brasil alegre e criativo, se misturam com as dores e as cicatrizes de um país violento e desigual.


Mas no Carnaval o Brasil mostra, principalmente nas capitais, a aceitação da mistura, da cultura miscigenada, das cores diversas, seja em religião ou ideologias. É quando o candomblé e a música negra são apresentados em avenidas com orgulho, e os tambores e fantasias coloridas fazem um balé clássico de contornos brasileiros.

Novela e cidades

Não se trata de buscar romantizar as lutas contra o racismo, ou minimizar uma das maiores desigualdades do mundo. A ideia de que tudo “acaba em festa” que o Carnaval pode trazer, tem significado muito mais relacionado a uma catarse coletiva. O próprio exagero dos dias de festa demonstram o caráter libertador de situações opressoras.

Situações que são tão visíveis nas cidades brasileiras quanto a alegria exagerada do Carnaval. A urbanização brasileira, como foi feita historicamente e como se consolidou, é a causa de muitos dos problemas que o país enfrenta. Segurança, saúde, educação e transporte são os principais.

A novela, outro traço cultural que o Brasil cultiva, costuma se popularizar quando traz em seu enredo as ramificações da vida na cidade, ou as dicotomias entre o campo e a urbanização.

Assim como o cinema teve papel preponderante na sociedade americana, a novela se transformou em um espelho, uma dramatização de apelo emocional e representativa. Os tipos retratados na teledramaturgia serviram como forma de entendimento da realidade social no Brasil, assim como os alívios cômicos foram usados como 'anestesiamento'.

Gole de cachaça

A brasilidade foi interrompida pela história conturbada do país, algumas vezes. Sucessivos golpes de Estado, ditaduras, uma democracia de pouca participação cidadã e a manutenção de um problema crônico na segurança pública.
Cena do filme "Ópera do Malandro", adaptação de Ruy Guerra da peça homônima de Chico Buarque de Hollanda
Cena do filme "Ópera do Malandro", adaptação de Ruy Guerra da peça homônima de Chico Buarque de Hollanda / Reprodução
O samba do Carnaval e a Bossa Nova nascida na burguesia boêmia carioca são exemplos emblemáticos da formação de uma nação desigual, mas que se identifica por elementos comuns das vivências coletivas — como o carnaval, a religião e as projeções na teledramaturgia.

Não há como fugir desses elementos sendo brasileiro. Mesmo o pedante preconceituoso está sujeito às consequências — boas e ruins — dessas culturas miscigenadas. Os brasileiros típicos, os excluídos, os abastados, os sulistas e nordestinos, o carioca, o paulista, e tantos outros são estereótipos de uma mesma construção social.
O malandro, cantado em verso e prosa, retratado nas novelas e no cinema, talvez seja o mais simbólico desses estereótipos, e traz consigo toda sorte de elementos artísticos, e provoca todo tipo de preconceito. Em um país onde por muito tempo o trabalho era “coisa de escravo”, e as relações trabalhistas ainda suscitam muitas questões não resolvidas no imaginário coletivo, o malandro é ao mesmo tempo subversivo e subserviente ao status quo.

Na ambientação do malandro, os botecos e a cachaça são também personagens desse drama social, onde a marginalização é cultural e impositiva. A cachaça, um produto brasileiro de exportação, oriundo da cana-de-açúcar cultivada por aqui há mais de quatro séculos, concentra muitos simbolismos, que dialogam fortemente com o Carnaval, as novelas e as religiões.

Para qualquer brasileiro, quer ele queira ou não (mesmo com cara de nojo), a imposição do convívio com os elementos que a cultura nacional introjetou é evidente. O Carnaval paralisa o país, e muitos dizem que apenas depois da folia começa verdadeiramente o ano.

Em um Brasil que “a gente vai levando de teimoso e de pirraça”, é preciso sempre “segurar o rojão”, seja qual for a classe social. Porém, para a maioria resta somente “a cachaça de graça que tem que engolir”. Entre arte, cultura, desigualdades e preconceitos, o Carnaval tem sempre seu fim, mas também seus recomeços.

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