A pena a favor da República
Edmundo Siqueira 01/03/2023 22:51 - Atualizado em 01/03/2023 22:57
Hoje, primeiro de março, lamenta-se exatos 100 anos que Rui Barbosa deixou o mundo dos vivos, e passou à condição de imortalidade, através de suas obras. Considerado por muitos como o maior intelectual que o Brasil já teve, Rui foi um árduo defensor do federalismo e do abolicionismo, jurista, advogado, diplomata, ensaísta, orador, político e tradutor. Mas, acima de tudo, se considerava um jornalista. “Das minhas ideias fixas a que menos tem variado é esta: a do jornalismo”, disse em um dos artigos no jornal “A Imprensa”.


Rui Barbosa entendia que a imprensa era algo essencial para construir o estado democrático de direito — ainda é, apesar da insistente deturpação desse papel por veículos contemporâneos —, e sabia, desde sempre, que os ideais abolicionistas e republicanos dependiam diretamente da atuação do jornalismo independente e acessível à população. Estava certo. Está na ampliação jornalística das vozes de personagens como Luiz Gama, José do Patrocínio, Castro Alves e do próprio Rui, as bases da República e do fim da escravidão no Brasil.

A imprensa, e o direito, eram as suas principais ferramentas. Participou ativamente dos movimentos que levaram a fundação da República, inaugurou o Senado em 1890, foi membro fundador da Academia Brasileira de Letras (ABL) e teve atuação fundamental para que o Supremo Tribunal Federal (STF) tivesse o papel de guardião da Constituição Federal. Era maçom, como muitos dos abolicionistas, e defendia a ampliação dos direitos trabalhistas, e é um dos pais do liberalismo social e democrático no Brasil, linha ideológica que em muito se afasta de premissas neoliberais vistas anos depois de sua morte.

Era também um homem de contradições — como qualquer um que se dedique muito tempo à exposição pública e a causas que atravessam tempos históricos. Em uma atitude completamente incondizente com o que defendia, Rui Barbosa decidiu queimar todos documentos que encontrou sobre a escravidão. Queria “acabar com o nosso passado negro”. Estava errado. Apagar a memória significa destruir a possibilidade de uma sociedade compreender de onde veio, de problematizar seus erros e de aprender com sua história.

Rui Barbosa via no jornalismo, além de tudo, uma forma de ser alguém do povo, partícipe das vivências cotidianas.
Rui Barbosa via no jornalismo, além de tudo, uma forma de ser alguém do povo, partícipe das vivências cotidianas. / Reprodução
Há também controvérsias quanto a sua capacidade como orador. Seus seguidores, fiéis até hoje, tratam de manter a lenda de que Rui era alguém dotado de uma enorme talento oratório. Seus inimigos, de antes e de agora, sempre o criticaram por proferir discursos maçantes e pouco eficientes quando analisados apenas pela oralidade.
Como verdade incontestável — e consenso mesmo entre os que criticam — está a sabedoria e profundidade de significados no que dizia Rui Barbosa. Mas, talvez, ele era alguém que precisava ser lido, não apenas ouvido. Mas, na cidade holandesa de Haia, na 2ª Conferência Internacional da Paz, em 1907, Rui foi considerado uma “águia”, ainda hoje reconhecido como tal, mostrando que também sabia ser ouvido. Essa, uma de suas boas contradições.
Sejam em discursos falados, ou eternizados pelo bico de pena, Rui Barbosa foi alguém que usou todos os poderes que a palavra pode conferir. No jornalismo e no direito, escreveu os caminhos da primeira República. A Constituição de 1891 foi praticamente escrita por ele, introduzindo nela os princípios republicanos e federalistas, a separação entre os Poderes e o regime democrático, em última análise.

Nascido em Salvador (BA), com praticamente 1 metro e meio de altura, Rui Barbosa mudou a história do Brasil e do mundo apenas com inteligência e com a palavra. Criou as bases civilizatórias que a sociedade brasileira precisava depois do Império, após abolir a atrocidade da escravidão. Em um dos seus textos mais famosos, a “Oração aos Moços”, lido em discurso a formandos da Faculdade de Direito de São Paulo (Rui estava acamado, não pode comparecer), dizia sobre o mal que estava, e continua a estar, no cerne de todos os problemas brasileiros: a desigualdade.
Disse, em um trecho:

“O direito dos mais miseráveis dos homens, o direito do mendigo, do escravo, do criminoso, não é menos sagrado, perante a justiça, que o do mais alto dos poderes. Antes, com os mais miseráveis é que a justiça deve ser mais atenta, e redobrar de escrúpulo; porque são os mais mal defendidos, os que suscitam menos interesse, e os contra cujo direito conspiram a inferioridade na condição com a míngua nos recursos”.

Rui Barbosa não viveu para ver a ditadura militar de 1964, não pôde escrever sobre a redemocratização e a Segunda República, e não viu seu busto ser vandalizado no STF por bolsonaristas que queriam destruir as bases democráticas e republicanas. Quando completam 100 anos de sua morte, Rui Barbosa passa a ser novamente muito necessário. Ainda bem que é eterno.

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