A cidade que Aurora morava, desde criancinha, começou a mudar desde que descobriram que o velho casarão do centro tinha valor histórico, e mais afastado de lá foi achado um sítio arqueológico importante. Pesquisadores do país inteiro vieram para a cidade, um centro de estudos foi criado e um campus da universidade federal foi implantado. O antes estático município, foi se transformando em um movimentado polo universitário.
Daí para o carnaval de rua foi um pulo. Quem morava na cidade e não podia viajar no feriado resolveu comemorar a maior catarse popular do brasileiro por lá mesmo. Primeiro os estudantes, depois alguns professores e por fim gente da cidade toda se juntou à folia.
A família de Aurora era tradicional, nascida e criada, toda, na cidade. A casa que construíram ficava em uma rua de paralelepípedo, que contornava o rio. Não tinha varanda, chegava-se ao interior dela através de uma porta de madeira de duas bandas, com maçanetas redondas, com tinta descascada. O janelão ao lado esquerdo de quem vê, era onde Aurora debruçava-se para olhar como estava o rio, ou para conversar com a vizinhança que passava. No carnaval, a rotina mudava. “Só vou sair na janela depois do bloco” — os foliões acabaram por determinar o horário da casa.
— Dona Aurora! Ô-ô-ô-ô, Aurora! — gritava um folião que saiu do seu grupo e veio de encontro à Aurora, que contrariava a si mesma, e já estava na janela — Dessa vez você vai sair com a gente, não tem desculpa!
Alberto era professor da universidade, daqueles que se transformava em folião nos dias que antecedem a quaresma, sete domingos antes do equinócio de primavera. Desde que o bloco começou, ele se incomodava com dona Aurora, por ela só assistir a festa. Alto, bonachão, calvo, cavanhaque bem aparado, costumava se vestir com austeridade para lecionar. No carnaval, se entregava ao bloco de corpo e alma. Naquela ano saira de sunga que estava coberta por uma saia rodada de fita, e na cabeça um arco, que sustentava a frase “educação salva”.
— Ah, deixa disso! Vem dona Aurora, quando a gente espanta já é quarta-feira de cinzas.
— Aproveita aí seu Alberto, eu tenho que arrumar as coisas aqui em casa. Um dia eu vou!
— Tá bom, então. Deixa eu ir que já, já é cinzas!
O bloco saiu e Aurora seguiu para sua rotina. Arrumava a casa como se recebesse visitas todos os dias. Impecavelmente limpa, mesa posta, quintal arrumado. Aposentada como professora do Estado, tinha os afazeres domésticos como única atividade que se permitia. A arrumação desse carnaval tinha certa razão de ser. Seu filho mais velho iria passar uns dias com ela, em companhia de sua nora e seus dois netos. Manter tudo em ordem parecia ainda mais uma obrigação para ela.
No domingo, Alberto passou na casa de Aurora novamente, dessa vez com sua esposa. Ambos vestiam camisetas do bloco, com cores vibrantes e brilhos de paetês. Alberto aproveitou a janela aberta e gritou para dentro da casa:
— Dona Aurora! Dona Aurora!
— O que foi, meu Deus? — Aurora veio da cozinha preocupada, secando as mãos no pano de pratos.
— Venha conhecer minha esposa, e passamos aqui para buscar a senhora.
— Como vai, moça? — disse Aurora sorrindo — esse rapaz aí insiste em me levar. Mas não posso, meu filho chega hoje, vai trazer as crianças. Já lhe disse que um dia eu vou, mas não será dessa vez.
— Aurora, Aurora...vamos que já, já serão as cinzas, já avisei a senhora.
— Ele tem razão, dona Aurora. Vamos aproveitar o carnaval! — a esposa de Alberto insistia.
Mas não foi suficiente. Mais algumas palavras trocadas e Aurora conseguiu fugir dos apelos. Tudo deveria estar pronto, as visitas prometeram chegar antes do anoitecer. Café e alguns bolos prontos, dispostos em uma mesa cuidadosamente organizada com as louças de cada familiar que viria. Depois de um tempo, tudo estava finalizado, e Aurora sentou-se no sofá para assistir a única programação que lhe interessava. Até que na mesinha ao lado, o celular acende a tela, havia chegado alguma notificação. “Mãe, resolvemos ficar mais um pouco aqui no Rio. Vai ter um bloco aqui incrível e queremos ir. Desculpe, mas vamos ver a senhora em breve, tá?”, dizia o filho pela mensagem.
Aurora ficou desolada. Embora morasse sozinha por opção, naquele entardecer a solidão havia ficado pesada. Não sabia o que fazer, ou o que pensar. Alternava em achar um desaforo a desistência da família em visitá-la, com o entendimento de que eles deveriam mesmo aproveitar e curtir o carnaval. Depois de passar um tempo com o cotovelo na guarda do sofá, apoiando o queixo com a mão, refletindo com olhar perdido, voltou à arrumação, começando pelo desmonte da mesa.
Enquanto guardava os pratos no armário, ouvia o barulho do bloco da cidade. Lembrou-se de Alberto, de sua esposa, e das muitas vezes que reclamava para ela mesma da bagunça que o carnaval promovia. Como se uma ideia nova iluminasse seus pensamentos, deixou a mesa como estava e foi para o quarto rapidamente. Havia tomado uma decisão.
Algumas horas depois, Alberto tomava uma lata de cerveja, sentado no meio fio, exausto da folia. Olhou para o bloco que ainda estava animado e não acreditou no que seus olhos viam. Dona Aurora finalmente saiu para o carnaval. Vestia um maiô que provavelmente nunca havia usado, com uma saia jeans e sandálias de dedo. Em cada passador do cinto havia um trapo pendurado, cada um de uma cor. Alberto reconheceu que vinha de um conjunto de toalhas de prato que dona Aurora mantinha intocável. Mas não daquela vez. Rapidamente chegou perto da agora foliã.
— Dona Aurora? É isso que mesmo que estou vendo?
— Oi Alberto! Eu vim! — respondeu Aurora com os braços para o alto, em tom de voz mais alto que o necessário, demonstrando falta de hábito de conversar com barulho.
— Como fiquei feliz! Pode acreditar! Mas…o que fez a senhora mudar de ideia? — dessa vez Alberto que falava alto, abaixando para falar mais perto do ouvido de Aurora.