Meras coincidências
Edmundo Siqueira 20/01/2023 22:52 - Atualizado em 20/01/2023 23:07
Arte: Edmundo Siqueira
Havia passado poucos meses do golpe. O presidente da ocasião, Getúlio Vargas, gaúcho nascido em São Borja, um senhor bonachão de testa alongada que adorava um charuto, comandava o país com uma habilidade política poucas vezes vista. O Brasil até então era governado por exclusivamente por mineiros ou paulistas, o que foi interrompido.

O golpe que acabara de acontecer manteve o mesmo presidente — um autogolpe clássico. Embora a Constituição que tinha sido promulgada, apenas três anos antes, garantisse eleições diretas, Getúlio não iria aceitar o resultado, e agia nos bastidores para que ninguém tivesse chances de vencer. E se vencesse, iria ser impedido de tomar posse, pela força. Os candidatos eram Plínio Salgado, líder da Ação Integralista Brasileiro, a AIB, um partido de extrema direita com inspirações fascistas, Armando de Sales Oliveira representando os oligarcas paulistas, e José Américo de Almeida que tinha apoio dos governadores dos estados.

Reprodução - Arquivo Nacional
Getúlio percebeu que ia perder. E o golpe passou a ser inevitável. Mas precisaria do apoio de dois grupos fundamentais: os militares e o Congresso. Vargas confabulou com o primeiro grupo para a criação de uma mentira. Naquele contexto histórico, o comunismo era um regime que crescia, principalmente depois da Revolução Russa de Outubro, onde os bolcheviques de Vladimir Lenin chegaram ao poder. A ideologia comunista causava pavor em outros países, conservadores ou não, e o capitalismo tratava de se autoproteger. Usando esse medo, Getúlio e os militares resolveram criar um plano. A ideia era vazar um documento que dava conta que os comunistas iriam invadir o Brasil a qualquer momento. Era o Plano Cohen, que não passava de uma mentira deslavada. Não havia plano de invasão, os comunistas nunca chegaram perto de ser uma ameaça real por aqui. Tudo tratou de ser desmascarado anos depois.


Mas em novembro de 1937, com o apoio de integralistas, militares e intelectuais, Getúlio rasgou a Constituição de 34, colocou todos os partidos políticos na ilegalidade e se manteve no poder, dessa vez como um ditador. O Estado Novo começava no Brasil e Getúlio Vargas era a palavra final: executivo, legislativo e judiciário em uma só pessoa.

Havia poucos meses do golpe quando um dos grupos que antes deu sustentação, resolveu se rebelar. Já nas primeiras horas do dia 11 de maio de 1938, o tenente Severo Fournier já estava com tudo pronto. Magro e dono de um bigode fino e bem cortado, o militar era filho de coronel e nunca havia pensado em nenhuma outra carreira que não fosse nas Forças Armadas. Atuava politicamente havia algum tempo, sendo muito próximo de militares paulistas e servindo como ajudante-de-ordens do general Euclides Figueiredo. Severo era o homem de confiança dos liberais paulistas naquele 11 de maio. A data iria marcar a história do Brasil e traria consequências inimagináveis.

O que estava sendo planejado desde o autogolpe de Getúlio — pouco mais de cinco meses, portanto — era uma revolução. Mais precisamente uma Revolução Integralista. Severo não era bem um integralista raiz, mas se aproximava do grupo de Plínio Salgado para derrubar o regime getulista, e quem sabe, colocar de novo algum paulista novamente na presidência do Brasil. Ele desempenhava um papel central naquele dia. Além de ser um militar tarimbado, já tinha experiência com revoluções. O general que ele foi ajudante-de-ordem teria sido um dos comandantes da Revolução Constitucionalista de 1932. Mas os integralistas seriam bastante ousados dessa vez. Essa tentativa de golpe seria inédita.

Reprodução - Arquivo Nacional
O deputado estadual paulista Plínio Salgado havia retornado ao Brasil no início dos anos 30. Depois de uma viagem pela Europa, estava atordoado; com a cabeça cheia de ideias. O que havia visto na Itália tinha de ser o futuro. Plínio era um intelectual. Romancista de algum sucesso da Semana de 1922 (movimento modernista brasileiro), chegou a ler uma poesia de sua autoria no evento. Na Itália, conheceu de perto o fascismo. Teve audiências com o duce Mussolini, aprendeu os métodos e se encantou com aquele movimento político absolutista e autoritário que se consolidava. A ideia de fazer o mesmo no Brasil se transformou em ação: a Ação Integralista Brasileira. A mesma AIB que estava pronta para o ataque naquele 11 de maio com Severo na liderança.


Era ainda madrugada quando o grupo seguiu para invadir e quebrar tudo que visse pela frente em prédios públicos. O principal deles seria, até então, uma ousadia inédita no Brasil: o Palácio Guanabara, residência do Presidente, sede do governo brasileiro. A data escolhida não foi aleatória. Era preciso que fosse diminuída a resistência, o Palácio precisaria ficar o menos protegido possível. O destacamento de Fuzileiros Navais, responsável pela segurança do presidente e do prédio deveria ser neutralizado, e um combate direto não seria a melhor opção.
Palácio Guanabara, atualmente Sede do Governo do Estado do Rio de Janeiro.
Palácio Guanabara, atualmente Sede do Governo do Estado do Rio de Janeiro. / Tomaz Silva/Agência Brasil
Então, precisaram contar com um infiltrado, o tenente fuzileiro naval Júlio Barbosa do Nascimento. Ele não apenas garantiu que o levante não tivesse resistência, como abriu os portões para os invasores. Uma vez dentro do palácio presidencial, os integralistas queriam conduzir Vargas e seus familiares para um navio cruzador operado pela Marinha, que aguardava ancorado. E assim impor, na marra, uma mudança de regime.

Quase convidados a entrar na sede do governo, os baderneiros e futuros terroristas não tiveram dificuldade de cercar o prédio e cortar a luz e os telefones. Getúlio estava no interior do Palácio, em companhia de sua filha, Alzira Vargas, e alguns poucos familiares. Também estava com o presidente o inseparável ajudante-de-ordem, o tenente Isaac, que tinha a sua disposição outros militares e auxiliares de segurança, todos com revólveres nas cinturas, apenas. Não havia como resistir a um embate mais forte, muito menos duradouro, com aquela estrutura, ainda mais com a ação do infiltrado Nascimento, que tratou de deixar os guardas quase desmuniciados.

Uma vez invadido, o interior do Palácio havia virado uma praça de guerra. Getúlio liderava a resistência governista pessoalmente, e uma intensa troca de tiros assustava a todos. Isaac já havia percebido que perderiam a batalha e alertou o presidente. Pediu para que o deixasse proteger sua família. Getúlio concordou, e quando o ajudante-de-ordem encontrou Alzira sentiu um alívio enorme. Os integralistas haviam cortado as linhas telefônicas, mas não sabiam de uma que fora instalada sigilosamente pelo engenheiro Osvaldo de Miranda. Essa continuava funcionando e a filha do presidente, de forma sagaz, já havia se comunicado com o Chefe de Polícia. 
O comandante já havia mobilizado um contingente da Polícia Especial e um destacamento do Exército. Sabendo da ameaça ao centro do poder brasileiro, o então ministro da Guerra, o General Eurico Gaspar Dutra — que viria a ser presidente durante a ditadura militar implantada anos depois —, saiu a pé e em trajes civis, da sua casa para o Forte do Leme, onde reuniu alguns praças e outros combatentes. Saíram, mais que depressa, de caminhão, em direção ao Palácio Guanabara. Com toda força atingiram o “Dondoca”, apelido do portão auxiliar, na guarita de um dos jardins da sede do governo.

Naquela altura Getúlio já sabia do ato heroico de sua filha, e a batida no Dondoca foi um dos melhores barulhos que o presidente poderia ouvir. Dutra com seus militares e os policiais da Força Especial, conseguiram debelar a invasão golpista. Os terroristas que queriam exilar (ou matar) o presidente e tomar o poder, haviam sido contidos. Outros prédios públicos também haviam sofrido tentativas de invasão naquele 11 de maio. A AIB de Plínio Salgado, que era um movimento extremamente numeroso para o Brasil dos anos 30, tinha preparado uma ofensiva grande. Mas não conseguiram tomar o poder à força.

O Estado Novo saiu vitorioso. Mas ainda era uma autocracia. Alguns dias depois o regime ficou ainda mais repressivo, Getúlio editou a severa Lei de Segurança Nacional, que restringia direitos e ampliava ainda mais os poderes do regime. Outro decreto instituiria a pena de morte no Brasil e alguns jornais foram fechados. Os principais líderes do levante integralista foram mortos, torturados ou exilados. Sete integralistas foram fuzilados ainda no interior do Palácio Guanabara. Plínio Salgado foi excluído do processo por falta de provas. Só ficou encarcerado por três dias, depois de um ano Getúlio decretaria seu exílio.

O totalitarismo de Vargas seria preferível, tendo como outra opção uma guinada para a ideologia nazifascista dos Integralistas, ponderavam alguns militares do período. O golpe dentro do autogolpe foi impedido, mas o país ainda seria solapado por outros movimentos golpistas. Alguns na Nova República, mais de 80 anos depois, e também com a participação dos militares, ainda atuando politicamente. A habilidade política do gaúcho bonachão Getúlio terminou quando ele tirou sua própria vida com um tiro no coração, 16 anos depois da invasão ao prédio do poder federal.

Já Plínio Salgado continuou golpista. Retornando ao Brasil em 1945, depois do fim do Estado Novo, fundou um partido, o PRP - Partido de Representação Popular. Queria reformular a doutrina integralista, querendo esconder a todo custo o passado fascista naquele período pós segunda guerra. Plínio concorreu à presidência novamente em 1955, obtendo 8% dos votos. Três anos depois elegeu-se deputado. Foi reeleito em 1962, por São Paulo. Ele ainda seria um dos principais personagens de outra aventura golpista: a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que culminou na ditadura militar.

Qualquer semelhança com a atualidade, não é mera coincidência.

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