É o mesmo Lula, de sempre. Ciente da desigualdade perversa que temos, genuinamente interessado em reduzir drasticamente a miséria, mas com um ar um tanto quanto demagogo, populista.
A fala assustou uma entidade abstrata muito presente nas discussões: o mercado. O tal mercado pesou sua mão (chamada de invisível) e fez despencar a bolsa e os mercados futuros e disparar o dólar. A abstração mercadológica opera sob expectativa, e elas foram as piores possíveis depois da fala de Lula.
— Por que as pessoas são levadas a sofrerem por conta de garantir a tal da estabilidade fiscal desse país? Por que toda hora as pessoas falam que é preciso cortar gastos, que é preciso fazer superávit, que é preciso fazer teto de gastos? Por que as mesmas pessoas que discutem teto de gastos com seriedade não discutem a questão social neste país? — disse Lula, no CCBB.
A questão ali foi Lula ter trazido uma ideia que não precisa ser aceita como a única possível. O que o presidente eleito disse, em essência, é que os gastos sociais não podem existir com responsabilidade fiscal, que são caminhos distintos. Não são, e o próprio Lula já provou isso em seu primeiro governo, quando conseguiu o selo de bom pagador da Standard & Poor’s em 2008, mesmo promovendo programas sociais robustos.
Embora o tal do mercado nem sempre faça boas avaliações, ele segue leis rígidas não-escritas. Se o risco sobe, os preços aumentam. Se um governante faz declarações que dão a entender que vai agir sem responsabilidade fiscal, gastando mais do que pode, a confiança diminui e investidores evadem.
Um governo normal com discussões sadias
De forma proposital ou não, o que Lula fez foi suscitar o debate. A declaração foi desastrosa quando procura reforçar a ideia de que os governos petistas dão pouca importância ao ajuste fiscal necessário. Depois do trauma do segundo governo Dilma, isso possui maior impacto do que realmente deveria, e com certa razão.
No mesmo discurso, Lula comete outra “derrapada”. Embora esteja correto em criticar cortes em programas com a Farmácia Popular, a fala dá a entender que ele planeja desvincular uma coisa da outra:
Essa aparente dicotomia — atende ao pobre ou ao mercado — não deveria ser parte do debate brasileiro. Em um país com enorme desigualdade e com o potencial econômico que possui as duas vertentes deveriam caminhar juntas.
A questão é que o país parece voltar a discutir os temas que realmente importam — com civilidade. Discordar dos caminhos que a economia deve seguir é perfeitamente normal. Visões antagônicas de como funciona a máquina pública, podem e devem estar presentes no debate.
A questão é que o Brasil dá sinais de que voltará a discutir economia, cultura, educação e saúde com a seriedade que os temas exigem, sem inundar o debate público com pautas de costumes improdutivas, como aconteceu nos últimos quatro anos.
No fim, as pessoas sérias, de direita e de esquerda, querem a mesma coisa: o progresso do país. A direita democrática não quer a volta da escravidão e não aceita negar a ciência. A esquerda responsável não quer um regime comunista, com liberdades cerceadas. Ambas as visões de mundo querem um país desenvolvido, com oportunidades melhores e mais amplas, com liberdade e com a busca da maior igualdade possível.
O debate deve acontecer, sempre. Em um país com as complexidades do Brasil e com a democracia enfraquecida, é preciso aprofundar as convergências que nascem das divergências sadias. A esquerda mais radicalizada precisa entender que a direita vai existir sempre, e que o poder vai ser alternado. A direita mais radicalizada deve entender o mesmo em relação à esquerda.
É possível viver em um país onde possamos chamar de “fascista” e “comunista” quem realmente é. E para esses intolerantes, de ambos os lados, a lei deve se impor. O que não pode é perdemos a capacidade de debater — com civilidade.