Declaração de (não) voto
Edmundo Siqueira 28/10/2022 20:08 - Atualizado em 28/10/2022 20:10
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Eu venho de uma família grande. A casa dos meus pais sempre foi habitada por um bocado de gente, desde nós, “membros efetivos”, até primos que passavam alguma temporada por lá. Sempre foi plural, convivemos com familiares e amigos de várias idades e formas diferentes de ver o mundo. Quando casei, minha casa continuou assim.

Dificilmente o leitor deste espaço me viu escrever algo pessoal. Aqui é assinado por mim, um local de opinião, às vezes jornalismo factual. Mas essencialmente, opinião. O que faz ter muito de “pessoal”, por óbvio, mas sempre procurei manter o menos particular possível. Os temas que escrevo — política e cultura — são e serão sempre coletivos.

Mas aqui vou lhe pedir licença, e perdão por qualquer digressão enfadonha, mas os tempos que vivemos não estão fáceis. Talvez precisemos de um pouco de pessoalidade. Para tentarmos recuperar um pouco da humanidade perdida — da civilidade e do mútuo respeito, em última análise.

Eu me importo tanto com cultura, não pela beleza dos casarões antigos ou pela importância de vultos históricos. Entendo que a cultura é o que forma um povo, uma nação. A formação da identidade, dos símbolos, de como uma sociedade se comporta, e na definição de quais caminhos tomar. Tudo isso passa por um entendimento da cultura, dos costumes, dos fazeres, das tradições.

Não temos, essencialmente, nenhuma diferença com os americanos, ingleses ou chineses. São pessoas vivendo em um território demarcado, com leis e regras sociais de convívio pactuadas. Mas quando pensamos em um chinês, fazemos uma projeção mental de alguém disciplinado. No caso do americano, projetamos uma pessoa ambiciosa, e para o inglês pensamos em alguém tradicional. São traços culturais que formam aqueles povos. São introjeções que formam comportamento e determinam condutas. Tão fortes que se externalizam até aos estrangeiro.

Talvez a diferença mais substancial que exista entre nós brasileiros e essas culturas é que temos menos tempo. Somos uma democracia bem mais jovem e ainda exercitamos pouco nosso senso coletivo. Mas não é nossa cultura que é menor que a deles. Temos riquezas culturais imensuráveis. O mundo ouviu e ouve bossa-nova, batuca nosso samba, admira nosso futebol, assiste nossas novelas, lê nossos autores — temos o melhor futebolista de todos os tempos, o melhor piloto de Fórmula 1 e Sinatra cantou “Garota de Ipanema”.

O Brasil que construímos pós-constituição de 1988 é um país fantástico. Sim, é repleto de problemas, muitos deles estruturais e outros crônicos. Mas saímos de uma grande fazenda em regime de escravidão para uma realidade de direitos, de garantias mínimas. Uma sociedade que pactuou o SUS, que diminuiu significativamente a miséria, que colocou as crianças nas escolas, que alfabetizou os adultos, que construiu um sistema tripartite para a aposentadoria, que democratizou o acesso à informação. Uma sociedade que Betinhos e Darcys dedicaram suas vidas ao próximo.
Não é que nos tornamos uma nação desenvolvida e exemplar. Longe disso. Somos muito jovens enquanto democracia e muito sacudidos enquanto povo. E não resolvemos a nossa profunda desigualdade, uma das maiores do mundo. Essa cultural, infelizmente, que mistura racismo, disputas de classes e misoginia.

Mas, desde que se redemocratizou e construiu uma Constituição cidadã, o país se tornou uma nação que vinha se ajustando, que estabilizou a moeda, controlou a inflação, um país onde a sociedade civil vinha ocupando espaços em comitês e conselhos comunitários, um povo que vinha diminuindo as discrepâncias regionais, e onde mais gente pode participar da vida social e política.

Tudo isso vem sendo solapado com Bolsonaro. O atual presidente, que tenta a reeleição, personifica o rompimento total com o período civilizatório iniciado na redemocratização.

Bolsonaro é alguém capaz de homenagear um torturador da ditadura militar em pleno Congresso Nacional, durante o julgamento de uma mulher que foi torturada. O atual presidente fez o que pôde e o que não pôde para desacreditar vacinas, atrasou a compra de imunizantes durante a pior crise sanitária de nossa era. Tripudiou sobre os mortos, imitou pessoas sufocando, riu do sofrimento de famílias. No auge da pandemia, chamou de “maricas” os brasileiros que tentavam salvar suas vidas. Bolsonaro é alguém que diz ser preciso “fuzilar” os adversários políticos,  e que “pintou um clima” com meninas de 14 anos  (se tiver estômago, tem link para as falas).
Bolsonaro, no auge da pior crise sanitária da nossa era, incentivando o uso de medicação sem comprovação científica
Bolsonaro, no auge da pior crise sanitária da nossa era, incentivando o uso de medicação sem comprovação científica / Reprodução
Bolsonaro foi capaz de reunir embaixadores do mundo inteiro para apresentar provas (que nunca existiram) sobre fraudes em nosso processo eleitoral. É alguém que repete mentiras esperando que elas se tornem verdades (linha já seguida antes na história). 

O que Bolsonaro representa é o reacionarismo. É alguém que quer fazer tudo para voltar para um modelo de sociedade onde o preconceito e o ódio são permitidos. Onde Igreja e Estado se confundem, onde os freios e contrapesos da democracia não são efetivos. Bolsonaro é o rompimento com o sistema democrático, construído a duras penas. Ele e seu vice, Mourão, falam abertamente em aumentar o número de cadeiras do Supremo para controlar a Corte.

É claro que existe governo atualmente. E boas ações foram feitas, seja em economia ou infraestrutura. Mas uma nação não se mede por isso, apenas. E além disso, em autocracias também existem governos. Há governo e serviços públicos na Venezuela e na Hungria, mas são países autoritários, ditaduras. Um de esquerda e outro de direita.

Um país decente e democrático é onde a maior parte possível dos cidadãos pode ter oportunidades semelhantes, onde o básico — saúde, educação e segurança — é garantido a todos. Bolsonaro propõe que existam grupos mais merecedores que outros. Que alguns brasileiros são mais patriotas que outros por adorar coturnos e símbolos nacionais positivistas.

Não há qualquer variante possível que me faça cogitar votar em alguém como o atual presidente. E apesar de sempre ter sido crítico aos governos do PT, e saber que a volta do Lula não é o ideal para preparar o país para os desafios do novo século, vou apertar o número 13 na urna, no domingo. Com bastante convicção, com a certeza que estou do lado certo da história.

O que Lula conseguiu agregar, principalmente no segundo turno, se assemelha ao que Tancredo reuniu para encerrar a ditadura. Lula formou a tão pedida “Frente Ampla”, mas não por sua vontade ou habilidade. A sociedade formou ao seu redor — da única alternativa democrática possível nesse segundo turno — uma quantidade enorme de lideranças. E o mais importante: muita inteligência. As melhores cabeças do país, em várias áreas, estão imbuídas em salvar o estado democrático de direito do Brasil e garantir as bases da Constituição Federal.


Lula não poderá fazer um governo petista. Lula obrigatoriamente fará um governo de transição, um governo que recupere a sanidade do país, a democracia, as instituições e a pluralidade. Lula não terá condições físicas, pela idade, de concorrer a um segundo mandato. E também por isso terá que encerrar sua carreira em um governo que lhe garanta entrar para a história.

Eu aprendi a conviver com a pluralidade e sempre respeitar para ser respeitado. Uma diferença aqui, outra ali, mas com a civilidade como um norte fixo. Algumas coisas são inegociáveis. A democracia é um valor inegociável. A Constituição que criamos, hoje, é inegociável. Quero viver em um país onde a ciência determine as ações do governo na saúde pública, onde a cultura e a educação tenham papel central, onde a intelectualidade seja valorizada, onde a desigualdade seja combatida e onde tortura e ditadura estejam na lata do lixo da história; e somente lá.

Eu vim de uma família que pôde me dar acesso. Boas escolas, bons livros, bons filmes, passeios, tranquilidade e uma cama quentinha para dormir. Talvez seja utopia esperar que todos no Brasil possam ter o mesmo, mas preciso ter a certeza que tentaremos. O Brasil que devemos querer não é o de Bolsonaro. O ódio e a intolerância não começaram com ele, estavam aqui, no mesmo Brasil. Mas desde 2014 vivemos em uma sociedade que não se respeita, que não aceita as diferenças. Uma sociedade que mata alguém por estar vestindo uma camisa de cor diferente.

Não é possível tolerar os intolerantes. Paradoxalmente, caso tolerasse, isso destruiria a própria tolerância. E devemos entender que democracia é uma promessa. Um acordo. Onde leis escritas devem ser respeitadas, mas as não escritas devem ser cultuadas. Bolsonaro é um intolerante. A escolha não é Lula, tenho convicção. Minha escolha de domingo é a de rejeitar tudo o que Bolsonaro representa.

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