Edmundo Siqueira
27/08/2022 18:50 - Atualizado em 27/08/2022 19:11
Na última segunda, dia 22 de agosto, um músculo cardíaco, necrosado e cheio de formol, foi recebido no Brasil com honras de Estado — com direito a salva de tiros de canhão. Sim, seu ex-dono era uma pessoa ilustre: d. Pedro 1º. Mas, não muda o fato que um pedaço de cadáver foi recepcionado e festejado pelo presidente da República e a primeira-dama.
O coração de Dom Pedro I é considerado uma relíquia em Portugal. Encontra-se conservado em formol há 187 anos. Nunca havia deixado o país. A história de d. Pedro 1º com o Brasil começa com a vinda da Família Real portuguesa para o Brasil, que transferiu a Corte para cá, em 1808. Vieram fugidos, com medo das tropas napoleônicas. Dom Pedro I foi o primeiro Imperador do Brasil, mas morreu cedo, aos 35 anos, em Portugal.
Antes de morrer, o Imperador proclamou a independência do Brasil, em 7 de setembro de 1822. Este ano, portanto, comemoramos 200 anos da Independência do Brasil.
Se esquecermos de olhar criticamente a invasão portuguesa de 1500 e as contradições da Independência é mesmo uma data a ser comemorada. Mas não em um espetáculo grotesco onde uma parte do corpo de uma pessoa morta é exposta.
Aliás, o corpo de Dom Pedro I já teria sido desmembrado depois de sua morte. O coração ficou na cidade do Porto, em Portugal, e os despojos se encontram sepultados na Cripta do Monumento à Independência, no Museu do Ipiranga, em São Paulo. Não é por acaso. Haveria um testamento do Imperador que determinaria que o coração ficasse na cidade portuguesa. Já no Brasil, a Cripta seria o local aproximado onde o então príncipe regente teria dado o Grito da Independência, em 1822.
O músculo cardíaco de Dom Pedro I nunca havia sido exposto ao público. Talvez os portugueses não tenham se interessado em ver uma parte de cadáver, mesmo sendo de um Imperador.
A história é um elemento vivo, em construção e sempre objeto de disputas de narrativas — e de poder, em última análise. Dom Pedro I teria dito que “deixava seu coração” no Porto, pela demonstração de lealdade que a cidade tinha dado a ele. Mas não literalmente. Uma evidente metáfora. Já o “grito do Ipiranga” não foi exatamente como no quadro de Pedro Américo, que imortalizou a imagem heroica da conquista da independência. O pintor paraibano foi instruído a construir uma pintura que desse patriotismo e coragem aos brasileiros, em um movimento nacionalista.
Bolsonaro e o coração morto
Convenhamos, Jair Messias Bolsonaro sempre atuou na necropolítica — fazer político baseado na morte, ou que também pode ser resumida na ideia que o governante pode ditar quem vive ou quem morre —, desde seus tempos de deputado. Com declarações dizendo que a ditadura “matou pouco”, quando ameaçava fuzilar inimigos, com a política de liberação de armas e munições e quando inspirava outros, que ganharam eleições com seu incentivo, a instruir as forças policiais “a mirar na cabecinha”.
A necropolítica não foi criada por Bolsonaro, mas ele encampa as teses com muita maestria comunicativa. Consegue atrair para si a ideia de que age em nome da ordem ou de uma “limpeza”. Estimula a ideia de que uma parcela da população poderia tratar outra como matável —“mirando na cabecinha” de criminosos, por exemplo.
Na pandemia em que vivemos isso apenas ficou mais explícito. A ideia contida na “imunização de rebanho” defendida por Bolsonaro, ou na predominância do interesse econômico sobre a vida, quando criticava o isolamento social (que ainda vê como errado afirmando em recente entrevista no Jornal Nacional), e principalmente no atraso da compra de imunizantes, são ações de quem acha que pode agir com o poder de determinar vida ou morte.
Um coração necrosado, colocado em um jarro cheio de formol recebido com honrarias militares, é o exemplo vivo do modo de fazer política do presidente Bolsonaro. Ou melhor, exemplo morto.
* Para que interessar possa, a visitação ao coração de Dom Pedro I está aberta ao público a partir deste sábado (27), no Palácio do Itamaraty, em Brasília.