Um trapalhão no Kremlin
Edmundo Siqueira 16/02/2022 09:28 - Atualizado em 16/02/2022 10:07
O ajudante de ordens chegou logo cedo na porta do quarto do presidente. Fardado, visivelmente nervoso, o jovem assessor hesitou. Estava com a incumbência de acordar o chefe antes do horário habitual. Com o punho cerrado, ante a porta palaciana, pensou um pouco, mas percebeu que não havia alternativa; precisaria acordá-lo. Deu duas batidas fortes o suficiente para despertar. Esperou um pouco e abriu a porta.

O presidente estava de cuecas, escovando os dentes, debruçado sobre a pia da suíte. Balbuciou algo que não podia ser entendido, babando a espuma do creme dental. O assessor aguardava, na soleira da porta do banheiro, procurando não olhar para baixo. Manteve um olhar meio que perdido; achou melhor, pelo que tinha visto antes.
— Tá tudo pronto, nisso daí? — perguntou o presidente já recuperado, secando o resto com uma toalha pequena. — Vamos sair agora?
— Sim, senhor presidente. A comitiva já aguarda o senhor para sairmos ao aeroporto.
— Olha só, fala que já estou indo, tá. Pode ir você, pode ir...
O assessor dá uma meia volta ligeira, e sai do quarto em direção à antessala. Minutos depois já estava no avião da FAB rumo à Rússia, junto ao seu chefe, a primeira-dama e uma penca de outros assessores. Antes de cochilar, conseguiu ouvir o presidente conversando com o ministro-chanceler: “confesso que estou com um nervoso hétero para esse encontro!”. Os dois riram. 
Viagem e procedimentos burocráticos de entrada finalizados, a comitiva se aproximava do Kremlin, sede oficial do governo Russo. Em um dos carros, o presidente esfregava as mãos na calça do terno. Olhou pela janela e viu os batedores passarem pelo rio Moskva, a Catedral de São Basílio e a Praça Vermelha. Logo já estaria no grande complexo fortificado, incrustado no centro da capital russa.
— Cadê aqueles papéis, hein? — perguntou o presidente, aflito, ainda no carro.
— Estão aqui, senhor.
— Me dá aqui. Essas coisas da carne e da soja aqui, vou ter que falar mesmo?
— É um dos motivos da viagem, presidente. Mas se o senhor achar melhor, podemos...
— Olha só — interrompia o ministro de Relações Exteriores — Eu vou ver lá o que vou falar, não vou ficar lendo nada não. Eu vim impedir uma guerra mundial, isso sim. Viu aquela foto minha lá, que fizeram com Jesus? É isso. Eu vim salvar o mundo, tá ok?
— Como achar melhor, senhor.
Dentro do Kremlin, momentos antes de encontrar o chefe da nação russa, o presidente ainda se mostrava inseguro com o motivo da viagem. Estava de pé e segurava o pulso esquerdo com a mão direita, abaixo da barriga, formando um “v” com os braços para frente. Inclinava a cabeça para o lado para poder conversar com o chanceler.
— Ele é ou não é comunista? — Perguntou o presidente, ainda mais nervoso. 
— Senhor, a antiga União Soviética era. Deixou de ser desde o início dos anos 90. Fica tranquilo, não vai manchar a imagem do senhor, não. Ele é um nacionalista. Está há mais de 30 anos no poder, quase um ditador.
— Ah, um patriota então! Acho bom. Mas ele não foi lá daquele negócio da KGB?
— Sim, foi chefe lá.
— A KGB comunista?
— Sim...mas é complexo, senhor. Melhor não falarmos sobre isso com ele.
— Vocês me colocam em cada uma. Vou te contar. E ainda tenho que dizer essa coisa de impedir uma guerra mundial aí. Depois que o topetudo saiu, deu nisso. Aquele comunista que está lá hoje em dia, bem que merecia uma guerra mesmo...
— O senhor está se referindo ao presidente dos EUA? Seria um comunista?
— Claro, imbecil! Vocês não sabem de nada. Não sabem o perigo que o mundo está correndo com esses comunistas. Por falar neles, o cara deve estar chegando já. Acabou a conversa, porra! — O presidente voltou a posição ereta. Depois voltou para dizer uma última frase: — O que você acha que eu sou?
O ajudante de ordens ouvia a conversa, em posição de sentido logo atrás do presidente, com roupas civis, com o mesmo olhar perdido que manteve no banheiro mais cedo, respondeu a pergunta retórica, em pensamento: “um idiota no Kremlin”.

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