Arthur Soffiati: Ilha da Madeira (I)
Arthur Soffiati 26/01/2021 13:05 - Atualizado em 27/01/2021 16:21
Há 200 milhões de anos, todos os continentes do mundo estavam unidos num só. Os cientistas atuais (já que não existia nenhum naquela época) batizaram o grande continente com o nome de Pangeia, ou seja, a terra toda. A circulação de animais e plantas era mais fácil. Pelo menos, não tão difícil, pois não havia oceanos como barreiras. Os grandes dinossauros dominavam esse vasto continente. Os mamíferos eram representados por pequenas espécies.
Em torno de 180 milhões de anos, o grande continente começou a rachar, dando origem a um grande continente no norte e a outro no sul. O do norte recebeu o nome de Laurásia, e o do sul foi chamado de Gondwuana. Também eles se racharam, agora no sentido longitudinal. A Laurásia deu origem à Eurásia e à América do Norte. Gondwana se partiu e deu origem à África e à América do Sul. Entre eles, formou-se o grande oceano Atlântico, com uma cadeia marinha quase toda submersa. As ilhas mais tarde batizadas de Oceania representam uma espécie de ovelha desgarrada.
Isoladas pelos oceanos Pacífico e Atlântico, dois grandes conjuntos continentais desenvolveram floras e faunas novas a partir dos organismos originais. As atuais Europa, Ásia e África estavam unidas. De grande ilha, a África acabou se ligando a Eurásia por um istmo, que deu origem aos mares Mediterrâneo e Vermelho. Por essa estreita faixa de terra, mais tarde batizada de istmo de Suez, algumas espécies de hominídeos originados na África ganharam a Eurásia. Só o “Homo sapiens”, a espécie da qual fazemos parte, alcançou a Oceania (40 mil anos passados) e a América (entre 50 e 12 mil anos passados). Entre Ásia, Austrália, Tasmânia, Nova Zelândia e outras ilhas da Oceania, as distâncias eram mais curtas no passado. Entre a Sibéria e o Alasca, existia uma ponte de terra que permitiu migrações humanas. Bastante tempo antes, a América do Norte ligou-se à América do Sul pelo istmo da América Central. A América do Sul viveu por milênios um esplêndido isolamento, permitindo o desenvolvimento de dinossauros enormes. Mais tarde, mamíferos herbívoros descomunais também reinaram na imensa ilha da América do Sul.
O paraíso sul-americano terminou quando uma ponte de terra ligou as duas Américas, permitindo a passagem de grandes mamíferos carnívoros no sentido norte-sul. Mais tarde, chegaram os humanos. O historiador Alfred W. Crosby, que tão excelentes contribuições trouxe ao conhecimento do domínio ambiental e à transformação dos ecossistemas do mundo, ainda manifesta dificuldade em compreender as diferenças culturais entre euroasiáticos, americanos e oceânidas. Talvez ele manifeste grande perplexidade diante dessas diferenças, ainda vistas por ele como desigualdades. No seu entendimento, os europeus conquistaram o mundo por sua superioridade cultural. Ele mostra que, no estágio paleolítico, não existiam grandes diferenças entre africanos, euroasiáticos, americanos e oceânidas. Todos viviam da coleta, da pesca e da caça. Mas, já nesse primeiro estágio da história da humanidade, havia uma diferença notável: a Oceania e as Américas, por ficarem livres dos humanos por milênios, desenvolveram grande abundância em termos de organismos vegetais e animais. África e Eurásia já eram percorridas por humanos há milênios. Os seres vivos coletados, pescados e caçados pelos grupos se esgotaram com tanta exploração. A escassez deve explicar o modo nômade dos grupos paleolíticos. Assim, o nomadismo passou a ser um traço para distinguir os grupos paleolíticos.
Quando ocorreram mudanças climáticas naturais a partir de 12 mil anos antes do presente, alguns grupos andarilhos domesticaram plantas e animais e inventaram a agricultura e o pastoreio. Esses grupos puderam se sedentarizar e desenvolver tecnologias que permitiram dominar melhor a natureza e outros grupos humanos. Pôde-se, assim, avançar para sociedades urbanas, que os estudiosos denominariam de civilizações. O modelo clássico é o da civilização mesopotâmica. No sul da Mesopotâmia, em torno de 3.200 a. C., grupos humanos criaram a cidade. Com ela, a vida se tornou complexa. Além da divisão sexual e técnica do trabalho, desenvolveram-se as divisões territorial e social do trabalho. Agricultura e pecuária tornaram-se atividades rurais. Artesanato, comércio, religião e política fixaram-se nas cidades. Mais espécies vegetais e animais foram domesticados. Os metais foram usados não apenas para a fabricação de adornos e utensílios, mas principalmente para armas que permitissem defender as cidades dos ataques de povos paleolíticos e neolíticos em busca de comida, como também a atacar outros povos para conquistá-los. Assim, parece que a superioridade eurasiática deveu-se mais à escassez que à abundância. O esgotamento de recursos no paleolítico e no neolítico levou os povos euroasiáticos a responderem com cidades, sistemas de escrita de fácil manuseio e armas, pelo menos. Na Europa, a situação revelou-se mais grave: os habitantes estavam cercados por áreas geladas ao norte, pelo mar a oeste e pelos muçulmanos e eslavos a leste. Ao sul, o grande deserto do Saara. E as Américas e a Oceania?
Primeiro, o grande continente único que existia há 200 milhões de anos partiu-se em dois no sentido norte-sul: Laurásia e Gondwana. Depois, cada um deles se partiu em mais dois no sentido leste-oeste, dando origem à Eurásia e à América do Norte, à África e à América do Sul. A África ligou-se à Eurásia por um istmo, assim com América do Norte à do Sul. O espaço entre África e Américas foi invadido pelo mar. Nasceu assim o oceano Atlântico. No meio dele, ergueu-se uma cadeia montanhosa que se denominou dorsal atlântica. Os picos culminantes dessa cordilheira são as ilhas Jan Mayen, Islândia, Açores, Ascensão, Tristão da Cunha. Mas há também ilhas mais próximas da costa Africana, como os arquipélagos da Madeira, das Canárias e Cabo Verde. Elas ficam nas latitudes do deserto do Saara, mas contam com condições climáticas que favorecem o desenvolvimento de vegetação pujante.
As ilhas que hoje forma a Oceania são como ovelhas desgarradas da Eurásia. Tanto elas como as Américas ficaram livres da presença humana por milênios. Assim, floras e faunas pujantes cresceram nelas. O humano entrou na Oceania há cerca de 40 mil anos e nas Américas entre 50 e 12 mil anos. Nos dois continentes, encontraram muita comida. Na Austrália, a fartura de plantas e carne inibiu os migrantes asiáticos, que não passaram do nível paleolítico especializado. Nas Américas, os grupos humanos alcançaram todos os níveis culturais: paleolítico, neolítico e civilização.
Mas, o historiador Alfred Crosby entendeu que todos esses estágios na Oceania e na América não alcançaram o nível dos euroasiáticos. Ele levanta uma explicação: os povos oceânidas e americanos viam os animais como seres habitados por espíritos que era necessário respeitar. Os povos euroasiáticos viam os animais como caça mesmo. Essa questão nos remete ao antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, segundo o qual a base cultural da Eurásia é o pastoreio, enquanto que a da América é a caça (“A inconstância da alma selvagem”. São Paulo: Cosac & Naify, 2002). Na Eurásia, a figura do pastor era muito respeitada, enquanto na América o respeito era dispensado ao caçador.
A concepção de mundo dos povos eurasiáticos era culturalista. O mundo se dividia em natureza e cultura, sendo que esta suplantava a natureza. Nas Américas, vigorava uma postura perspectivista, segundo a qual existia uma só cultura, mas muitas naturezas segundo a perspectiva anatômica de cada espécie animal. Mas, citando François Bordes, Crosby apresenta a resposta sem perceber: Austrália e América eram dois novos paraísos invadidos por humanos. A Terra deixou de ser virgem. Agora, talvez, só algum possível planeta desabitado com natureza semelhante à terráquea se igualasse à América. E, se isso acontecer, ainda não estamos preparados para lidar com a natureza sem a destruí-la.
As duas concepções de mundo — culturalista e perspectivista — vão se encontrar no seéculo XV com a expansão de uma Europa estrangulada pelos muçulmanos, eslavos e escandinavos. Estes últimos chegaram à América no início do século XI, atravessando a cadeia de montanhas do fundo do Atlântico com suas embarcações. Eles eram guerreiros e queriam fundar colônias. Chegaram a criar algumas na Groenlândia e na costa norte da América, mas fracassaram na sua empresa no século XV, quando os europeus latinos alcançavam a América com Cristóvão Colombo, em 1492. Conquanto os escandinavos fossem guerreiros, eles ainda não contavam com armas de fogo. Os povos pioneiros da América tinham armas tão eficientes quanto a dos escandinavos e os enfrentaram de igual para igual.
A saída do Mediterrâneo para o Atlântico já havia sido empreendida pelos egípcios, fenícios, gregos e romanos. Heródoto escreveu com desconfiança que o faraó Necau II (660 a.C.- 593 a.C.) patrocinou uma expedição fenícia para circundar a África, partindo do mar Vermelho, contornando o cabo da Boa Esperança (que ainda não tinha esse nome), navegando a costa ocidental da África e alcançando o delta do Nilo pelo mar Mediterrâneo. Uma expedição fenícia saída de Cartago, no século XXX, sob comando de Hanon, teria saído do Mediterrâneo e costeado a África ocidental por considerável extensão. É o que nos conta o “Périplo de Hanon” (“Périplo de Hanão” com estudo introdutório, tradução do grego e notas de Victor Jabuille. Lisboa: Editorial Inquérito, 1994). A cartografia grega mostra que o mundo atlântico já era bem conhecido, embora nele, claro, ainda não figurassem as Américas. Uma obra poética do latino Avieno, que viveu no século IV a.C., narra a viagem, provavelmente empreendida pelo cartaginês Himilcan no século V a. C. (“Orla marítima”. Introdução, tradução do latim e notas de José Ribeiro Ferreira. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, 1985). É quase certo que fenícios e romanos tenham atingido os arquipélagos das Canárias e da Madeira.

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