No ano em que foi promovida a Semana de Arte Moderna — 1922 —, a casa de Mário de Andrade se transformou num ponto de encontro de três escritores e duas pintoras: o próprio Mário, Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia, Anita Malfatti e Tarsila do Amaral. Todos eles eram amigos entre si e batalharam em defesa da arte moderna numa São Paulo ainda dominada pelo parnasianismo. Que ninguém pense que a Semana sepultou num ano apenas o passadismo parnasiano e simbolista. Ele resistiu galhardamente aos novos. Toda mudança tem esse perfil: começa tímida e pode morrer se não estiver em consonância com seu tempo. Se estiver, tende a prosperar lentamente. Foi assim com o modernismo.
Não se pode comparar um cômodo da casa de Mário de Andrade com os famosos salões das famílias Prado, Penteado, Freitas Vale, Thiollier e algumas outras, todos eles nas mansões de seus proprietários enriquecidos pelo café e integrantes de famílias tradicionais. Eram os paulistas quatrocentões. Pessoas ricas que abriam as portas de suas casas para intelectuais jovens e velhos, artistas e apresentações musicais. A casa de Mário de Andrade era, na verdade, da mãe dele. Mário era solteiro. Sua família não via com bons olhos a presença de duas mulheres entre três homens, com o agravante de uma ser solteira, e a outra, separada e com uma filha.
Anita Malfatti retratou o grupo num esboço em que ela aparece deitada num sofá, Menotti e Oswald deitados num tapete, Mário e Tarsila ao piano. Pelas cartas e pelo que mostrou a realidade, Anita gostava de Mário, que gostava de Tarsila, que gostava de Oswald, assim como esse gostava de Tarsila, e Menotti ficava de fora. Tarsila e Oswald se uniram, enquanto que Mário e Anita tornaram-se solteirões.
Há dúvidas de que um grupo de cinco artistas buscando renovação na cultura despertasse interesse para a pesquisa se Mário de Andrade não participasse dele. Pensemos no Grupo dos Cinco com Ribeiro Couto, sem Mário. Por mais que os cinco trocassem cartas entre si, faltaria a presença inquieta e crítica do autor de “Macunaíma”. O grupo teve vida breve. Mais intelectuais e artistas participaram dele, ainda que eventualmente. Porém, cinco o caracterizaram mais. Não cabe conferir a nenhum deles qualquer caráter de idealização. Havia vaidades, disputas, complexo de inferioridade por parte de seus integrantes. Em Mário, existia a pretensão de liderança. Aliás, essa pretensão está presente em quase todas as missivas dele aos seus correspondentes dentro e fora do grupo. Talvez apenas com Manuel Bandeira houvesse uma postura de ombrear-se de igual para igual. Quanto aos outros, prevalecia a atitude professoral de Mário.
Contudo, havia algo mais que a vaidade. Ela não sustentaria a trajetória de Mário por muito tempo. Por mais que a vaidade seja um traço intrínseco da sua personalidade, havia nele uma inquietação intelectual pouco comum nos escritores e artistas de seu tempo. Havia o descomunal desejo de construir um projeto de cultura para o Brasil que alcançou até desenhos infantis e renda de papel e linha.
A vida de Mário foi marcada por renúncias e investimentos pessoais, pelo celibato (de qualquer natureza), pela compra de livros, pelo estudo de línguas e pelo financiamento de seus primeiros livros. Oswald era um folgazão indisciplinado que dilapidou suas finanças herdadas da família em viagens que não se converteram em maiores contribuições ao modernismo. Ele atraiu as atenções com seus manifestos e com seus livros na década de 1920 e foi saindo de cena. Menotti detinha um diploma de advogado, título ainda valorizado na época e que lhe conferia o tratamento de Dr. Mas seu talento se esgotou rapidamente. Anita Malfatti representou, com seus quadros na exposição de 1917, o estopim da Semana de Arte Moderna. Porém, não conseguiu manter interesse por sua obra. Além do mais, ela se sentia complexada por um defeito físico e pela estonteante beleza e talento de Tarsila do Amaral, a sinhazinha que rompeu com os costumes femininos de sua época.
Mário era o pobretão do grupo. Não tinha títulos acadêmicos. Não integrava família aristocrática. Economizava dinheiro para editar seus livros. Além do mais, não podia esconder que era negro, por mais matizada que fosse sua negritude. E, internamente, travava luta com seu homossexualismo, traço que Oswald tratava com deboche. Ele parecia mais bissexual e deve ter sofrido muito por ocultar sua sexualidade.
Mário viveu o seu tempo. Desenvolveu-se no primeiro momento modernista. Participou ativamente da Semana de Arte Moderna, que teve por sustentáculo a economia cafeeira paulista, e, ao mesmo tempo, autoconstruiu-se e ultrapassou seu tempo. Vários companheiros seus não conseguiram vencer seu momento com o mesmo vigor e serem merecedores do mesmo interesse que Mário de Andrade representa ainda hoje.
A um estudioso da cultura brasileira, qualquer tema que envolva Mário de Andrade adquire interesse para a pesquisa, seja a solitária visita que o autor de “Pauliceia desvairada” fez ao poeta Alphonsus de Guimaraens em Mariana, no longínquo ano de 1919, seja sua breve incursão ao lago de Arari, em Marajó ou na ilha do Mosqueiro, em que se banhou durante sua viagem ao Norte.
Não se trata de vedetizar ou de enaltecer a figura de Mário, mas levar em conta que seus gestos não foram gratuitos. Ele nunca saiu do Brasil, salvo ocasião em que brevemente esteve em Iquitos, Peru, e rapidamente na Bolívia. Cada situação vivida por ele era registrada e problematizada em suas cartas, em seus escritos na imprensa e em seus livros.
Uma análise sociológica deve articular o estrutural e o epifenomenal. Essa abordagem é particularmente importante num momento em que se oscila ora para o estrutural, ora para o epifenomenal. O jornalista Ruy Castro, em seu livro “Metrópole à beira-mar”, de certa forma contribuiu para trazer novamente à tona dos debates essa falsa dicotomia, pois, em nenhuma situação (talvez apenas só nas sociedades paleolíticas e neolíticas), a figura individualizada de um personagem pode ser explicada sem a estrutura subjacente. Da mesma forma, a figura promotora não se reduz à estrutura. Castro escreve que não há mérito em Mário de Andrade de usar o verso livre em “Paulicéia desvairada”, pois outro Mário, o Pederneiras, deve ser considerado o verdadeiro pioneiro nesse emprego, já que dele fez uso em “Outono”, escrito em 1914 e publicado em 1921. O primeiro Mário tinha atrás de si toda uma discussão sobre a poesia moderna, exposta pouco depois de “Pauliceia” em “A escrava que não é Isaura”. O segundo Mário foi um poeta simbolista dos mais inexpressivos por não saber metrificar e rimar. Foi esquecido.
Fugindo da falsa polaridade estrutura x indivíduo, situemos com propriedade a epicentralidade de Mário de Andrade não apenas no Grupo dos Cinco, como também no Movimento Modernista e na Modernidade de um modo geral. Mário viveu o seu tempo. Desenvolveu-se no primeiro momento modernista. Participou ativamente da Semana de Arte Moderna, que tem por sustentáculo a economia cafeeira paulista, e, ao mesmo tempo, autoconstruiu-se e ultrapassou seu tempo. Vários companheiros seus não conseguiram vencer seu momento com o mesmo vigor e serem merecedores do mesmo interesse que Mário de Andrade representa. Na primeira biografia de Mário, escrita por Eduardo Jardim, seu autor divide a vida do modernista em duas fases: a primeira, de 1922 a 1938, seria criativa. A segunda, até sua morte, seria estéril. A criatividade de Mário, de fato, mostrou-se ativa na literatura durante a primeira fase. Mas a segunda apresenta o grande interesse pela discussão que Mário promove do modernismo. Não se trata de uma fase estéril, mas madura.
Por essas razões, o intelectual paulista ultrapassou sua cidade, seu estado, seu pais e seu tempo. Ele parece ser um bom exemplo para aqueles que dedicam suas forças produtivas para o bairrismo.