Arthur Soffiati - A primeira fase do modernismo e a música popular brasileira (I)
Arthur Soffiati - Atualizado em 07/03/2022 21:07
Costuma-se dividir o modernismo brasileiro em três fases. A primeira se estende de 1922, com a eclosão da Semana de Arte Moderna, a 1930, quando uma nova geração de escritores despontou. A segunda situa-se entre 1930 e 1945. A terceira fase ocorre depois de 1945. É claro que marcos temporais com datas precisas têm efeito didático. A rigor, o modernismo começa antes de 1922 (talvez em 1917) e estende-se aos nossos dias. Mesmo aqueles que declaram não ter recebido influência da primeira fase do modernismo, têm uma dívida com ele.
Na primeira fase, deu-se pouca importância à música popular, que já vinha modernizando sua linguagem musical e linguística. Que bastem os exemplos de Pixinguinha e Noel Rosa. Por mais elitistas que fossem os modernistas da primeira fase, o descuido com a música popular ocorreu porque os intelectuais estavam empenhados na luta contra os passadistas na literatura, e esta luta consumia-lhes a energia.
Havia um outro impedimento: a maior parte dos escritores não tinha formação musical. Vale dizer, não conhecia a linguagem da música. Não sabia ler uma partitura. Assim, a questão acabava restrita a músicos como Francisco Mignone e Villa-Lobos, por exemplo. Havia, contudo, um intelectual que lidava muito bem com interpretação, estética e história da música, sabendo ler partituras como se dominasse mais uma língua falada. Trata-se de Mário de Andrade, professor de história da música no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo.
Com relação à música, a preocupação central de Mário era o conhecimento e o registro da música folclórica brasileira, que ele chamava também de música popular, às vezes de música popular rural. Ele também buscava na música folclórica temas que inspirassem a música erudita. Daí o impressionante registro gráfico que empreendeu em sua viagem ao Nordeste, em fins da década de 1920. Daí também a expedição que promoveu ao Nordeste quando dirigia o Departamento de Cultura do município de São Paulo, com o fim de efetuar registros fonográficos da música e de suas manifestações coreográficas, que Mário ainda considerava mais ou menos preservadas de influências da “civilização”.
O disco gravado por meio elétrico representou um marco para Mário. Num artigo, ele lamenta o destino das gravações feitas por Roquete Pinto em Rondônia. Elas ainda não eram elétricas e estavam abandonadas no Museu Nacional do Rio de Janeiro (O fonógrafo. “Diário Nacional”, 24/2/1928, microfilme IEB/USP). As gravações por meio elétrico começam no Brasil em 1927, não com a mesma qualidade apresentada nos Estados Unidos.
Mário de Andrade faz logo uma primeira observação curiosa e apropriada sobre o disco: “O grande valor do fonógrafo e da sua vasta parentela contemporânea é ser um instrumento com caráter próprio (...) O fonógrafo realiza sonoridades especiais (...) O fonógrafo tem pois uma sonoridade toda especial, que pode produzir timbres diferentíssimos. (...) Portanto, o fonógrafo possuindo técnica própria e que, no caso, é mecânica, e possuindo timbre especial que lhe pertence particularmente, o fonógrafo é um instrumento como qualquer outro, passível portanto de adquirir especialização. Música pra fonógrafo, como existe música para pianola (...) desde Monteverdi pelo menos, os instrumentos principiaram adquirindo uma espécie de psicologia pessoal, psicologia que lhes determina o ambiente pra funcionar e que, por associação de imagens, provoca em nós a revivescência desse ambiente (...) Um piano ao ar livre perde incontestavelmente cinquenta por cento da sua personalidade e da sua função (...) ao ar livre, de noite, a flauta ganha um poder formidável de comoção e possibilidades acústicas (...) Um órgão dentro duma casa de família é berrante e aberrante (...) O fonógrafo é essencialmente um instrumento de lar. A função especial dele é transportar pra dentro de casa toda a representação (não reprodução) da música universal.” (Cinema sincronizado e fonografia, “Diário Nacional”, 20/1/1930 - IEB/USP).
Assim, o disco tanto pode ser usado como instrumento, sendo ele em si um instrumento. Em 1924, o compositor italiano Ottorino Respighi usou a gravação em disco do canto do rouxinol no terceiro movimento do poema sinfônico “Pinheiros de Roma”. Contudo, Mário de Andrade iria mais longe do ponto de vista teórico: o disco não apenas pode funcionar como novo instrumento. Ele transforma os sons de instrumentos gravados e passa a ser instrumento distinto. Em 1928, o russo Léon Theremin inventou um instrumento totalmente eletrônico que Mário registrará em sua “Pequena história da Música”. O instrumento recebeu o nome do seu inventor: teremin.
O disco marcou profundamente a visão de Mário de Andrade sobre a música. Ele viu na inovação a perspectiva de registrar a música folclórica brasileira de forma fiel: “Nossa música popular é um tesouro prodigioso, condenado à morte. A fonografia se impõe como remédio de salvação. A registração manuscrita é insuficiente porque dada a rapidez do canto é muito difícil escrevê-lo e as palavras que o acompanham (...) Tanto mais que a dicção e a entoação dos cantadores é extremamente difícil de ser verificada imediatamente com nitidez (...) Usam uma nasalação e um portamento constante tão sutil, ao mesmo tempo que o rubato rítmico de imprevistos tão surpreendentes e livres que o músico fica quase na impossibilidade de traduzir imediatamente na escrita o que está escutando. Por tudo isso o fonógrafo se impõe.” (O fonógrafo: “Diário Nacional”, 24/2/1928 - microfilme IEB/USP).
Já escrevendo para jornal e crítico de música conhecido e respeitado, era natural que Mário de Andrade merecesse a atenção das gravadoras estrangeiras que se instalaram no Brasil, principalmente a Victor e a Odeon, e recebesse gratuitamente discos para comentar. Ele ficou deslumbrado com as possibilidades do disco. Até então, o crítico lia partituras e assistia a concertos. A partitura não permite acesso a toda a dimensão de uma música orquestral, por exemplo. Os concertos eram públicos e só permitiam a audição de músicas quando ocorriam. No artigo “Discos e fonógrafos”, publicado no “Diário Nacional”, de 11 de março de 1928 (IEB/USP), ele comenta: “Nada mais legítimo do que a gente se deliciar escutando, por exemplo, a interessante transcrição para orquestra da ‘Tocata e fuga’ em ré menor de Bach, executada pela Orquestra da Filadélfia, ou as interpretações prodigiosamente interessantes de Cortot, em Liszt ou Chopin. Cortot só faz turnês de concerto na chamada ‘América’. Para o Brasil jamais virá. Só mesmo em discos, e de uma exatidão magnífica, podemos gozá-lo”. E ele ficava maravilhado com discos de 78 rotações em gravações ainda precárias diante das que foram sendo aperfeiçoadas posteriormente. Que diria ele dos CDs?
A importância do disco como instrumento pedagógico foi logo percebido por Mário: “Minha convicção é que as casas de ensino musical deviam possuir um bom aparelho fonográfico e uma Discoteca. Só mesmo com isso um professor de História da Música, de Estética, ou mesmo um professor de instrumento podia dar para os alunos um conhecimento verdadeiramente prático e útil. Quanto à História então, acho que a utilização das vitrolas modernas está se tornando uma precisão imperiosa”. (Discos e fonógrafos, “Diário Nacional”, 11 de março de 1928, IEB/USP).
Mas ele reclama da subutilização do disco no artigo “Gravação nacional” (“Diário Nacional”, 10 de agosto de 1930 In: “Taxi e crônicas no Diário Nacional”. São Paulo: Duas Cidades, 1976): “A discação brasileira é quase que exclusivamente do domínio da música popular urbana, quero dizer, a depreciada, banalizada pelos males da cidadania”. Aqui, nota-se o uso do termo popular para indicar tanto música folclórica, que é produzida de forma anônima sem visar a gravação fonográfica, e a música popular urbana, hoje conhecida como música popular brasileira. Esta é produzida tendo por finalidade a gravação. Pode-se até afirmar que ela depende do disco, algo que não ocorria com a música erudita e com a música folclórica.

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