Não é o tempo que passa. Somos nós quem passamos
Revendo, porque relendo os caminhos lá atrás, atrás do atrás, trilhados, compulsoriamente, pelas mulheres, impus-me empreender uma viagem no tempo, tela na qual cartografamos nossos ontens, hojes e amanhãs.
E foi abrindo mão de minha modernidade líquida que atualizei meu passaporte com destino aos séculos XVI, XVII e o XVIII, o “século das luzes” que deixou as mulheres no escuro.
Cheguei lá. Vi. Revi. Não gostei. Constatei, sem perplexidade e, paradoxalmente, estarrecida, em absoluto estarrecimento, todo e tudo o já sabido. Não ouvi a voz feminina. Seu compulsório silêncio gritava violência, opressão, dor, vergonha, rimas de seu nada ser.
Viviam as mulheres, predominantemente, as negras, a dor das “genis” que pelo Chico foram cantadas no século XX. E perguntamos: para resgatá-las de seu passado? Para realçar a presença ainda viva das “genis” em plena era digital?
Havia um repulsivo e silencioso submeter-se. E neste compulsório submeter-se, neste silencioso sofrer, acreditavam-se as mulheres sempre “feitas” para apanhar, acreditavam-se “boas de cuspir”. E no compulsório roteiro que lhes era imposto viver, como se destino fosse — este quinhão que toca a cada um — o autoviver lhes era cerceado. Viviam “genis” forçadas o “dar para qualquer um” como se pinicos fossem, depósitos de mijos e merdas.
Mas lá, na intimidade de seu útero, forçadas à reprodução, para duplicar, triplicar as futuras gerações escravas, essas mulheres espargiam, borrifavam sementes de liberdade, de justiça que intuíam existir. E foram destas sementes que nasceram os “Patrocínios” de ontem, as “Conceição Muniz” e os “Orávio de Campos Soares” de hoje. E citando-a, citando-o, cito todas e todos que em sua negritude traçaram arco-íris sobre a terra que não as abraçou, não os abraçou. Mas entre as águas que correm desliza como pássaros o DNA de seu Ser. E foi dentro da intimidade uterina mãe/filha, mãe/filho que as sementes da igualdade — dentro das diferenças — foram lançadas para se tornarem tons e semitons de uma melodia, como o Yin e Yang que só existem na relação um com o outro.
Ai, o alimentar-se de esperanças incertas, aí o aceitar-se elo de passagem espargiu e se espraiou sobre terras e águas. Aí, um certo ar de futuro se fez presente. E aí, as tensões aumentaram, enquanto uma inflação fálica recrudescia sua força. E as mulheres, sob sol e chibatas, corpos adestrados, foram para as terras lavrá-las e adubá-las, preparando-as para moedas fazerem germinar.
Paralelamente ao capital que era duplicado, triplicado, era gestada a acumulação da pobreza. E o binômio se consolida: mais pobres, mais capital. Mas lá, bem lá dentro da gruta, as mulheres cartografavam dias amanhãs sonhados e sonhados porque desejados: o direito do livre ser, o direito à propriedade do próprio corpo, o direito a Ser sem “geni” ser.
E acontece que o mundo é esférico. E gira. E está girando. O lugar em que hoje estamos, será outro no cirandar do amanhã.
Acontece que “Je est un autre” / eu é um outro / — e não vamos entrar em gramatização agora — dizer de Charles Baudelaire, século XIX, expressão que fez e faz o mundo pensar. Ou seja, para saber quem sou “Eu”, preciso conhecer a “Outra”, o “Outro” que sou, que é “Eu”.
Acontece que não é a vida que passa. Somos nós quem passamos. E no passar, abrimos caminhos para outros “eus” que no girar compõem o “Eu” “Outra”/“Outro” que em mim coabitam.
Acontece, então que o “Eu” é singularmente plural: dentro do “Eu” vivem, covivem e convivem muitas Outras / muitos Outros que espelhos são do “Eu” que fui, que sou. E serei!
Acontece ser o presente passaporte — autoriza-nos todos os imaginários.
Acontece que a vida — líquidas reticências — envolveram suas margens, e nestas margens encontraram e resgataram as mulheres que ali eram mantidas e em “ondas”, que ciclos são, colocaram-nas em seus topos de vida, onde são lidas por diferentes e plurais leitores.
Acontece que à medida que terras e águas eram mapeadas, as mulheres continuaram a ser pertences do dominador, obrigadas a ser objetos para uso e abuso de insaciáveis fomes.
Virem a página. Corpos rebelados estão em trânsito.
Estamos no século XIX, em sua segunda metade. E fundamentadas em estruturas que se aprofundam, as mulheres se querem “sujeito”, ainda que enigmatizadas. E vão em busca das condições que acreditam necessárias para sujeito ser. E dentro desta busca, dentro dos tempos, que sempre se alternam, descontinuidades/continuidades, igualdades/diferenças, determinismos/imprevisibilidades, tornaram-se marcas em suas vidas. E as mulheres vão se tornando outras nas mesmas. E todo dia é sempre o dia de recomeçar.
E é o anti-racismo — signo de igualdade — uma de suas primeiras metas ainda presentes hoje século XXI. Investimentos coletivos aproximam as mulheres E pequenos grandes ganhos começam a acontecer nas relações politico-sociais. Uma “onda” tudo enovela. E é neste enovelar que acontece a “Abolição da Escravatura”. E as mulheres tomam posse de sua miséria social. Tomam posse de si. Não é a posse do ter. É a posse do poder ser SER.
E é dentro desta primeira “onda” que nos foi legada pelo século XIX, que as mulheres conquistam o direito ao voto/ década de 30 — século XX. Há uma cidadania em construção. Há uma promessa de igualdade que em pleno século XXI ainda não aconteceu. Está em processo. Como em processo estão a luta pela educação; o acesso aos produtos culturais.
E foi no enovelar da primeira “onda” que as duas guerras mundiais aconteceram.
Uma fonte de existência socialista se acirra e leva as mulheres em 1964 à participação das lutas democráticas. Estamos ondejando pela segunda “onda” que marca a presença feminina.
A célebre posição de Simone de Beauvoir “não se nasce mulher, torna-se mulher” constitui tema e emblema para radicais posições. O slogan “nosso corpo nos pertence” ganha amplas configurações. nas grandes cidades e capitais, assim como o movimento hippie de “paz e amor” evidencia uma busca de relações inter-humanas. Clínicas clandestinas de aborto acolhem as mulheres que se tornam telas onde “elas” cartografam as agressivas violências contra seus corpos.
A violência política está escancarada. Paradoxalmente, estamos soletrando a semântica do conviver.
Uma terceira “onda” vai serpeando os espaços trazendo inovadoras e renovadoras relações e reações histórico-culturais. Eleições são marcadas. E ainda que haja intensa participação das mulheres a palavra patriarcal mantém sua força. A honra masculina está no corpo da mulher. Paralelamente, mulheres negras contestam as mulheres brancas: não é verdade que “somos todas iguais”.
Estamos em 1988, no elaborar da Constituinte que se propõe pensar um novo Brasil. E nela está presente o “lobby do batom”. A palavra da mulher está em registro. O binarismo do gênero perde seus injustificáveis espaços. Gays, lésbicas, homo, trans, corpos rebeldes estão em trânsito. Paralelamente, o homem entra em crise. Feminicídios se sucedem. Um complexo de “macho”, um desejo de submeter a mulher, objeto de cama se acentua. Macho se torna rima de violência. (Curiosamente, lá atrás do atrás, o sanguinário Lampião, Virgulino Ferreira da Silva, rei do cangaço, compôs “Mulher Rendeira”: “tu me ensina(s) a fazer renda, que eu te ensino a namorar”.
As mulheres continuam sua irrefreável busca de igualdade, assim no papel como na vida, conscientes de que em determinados tempos e lugares seja tão difícil ser mulher que ao assinar o contrato mulher/história, mulheres tremem.
A heterossomatividade opressora insiste em não abrir espaços para corpos transgressores em sua pluralidade de ser, em sua liberdade na conquista desse jeito ser. Este radicalismo veste uma força regressiva que escancara o medo da competição, o medo da castração.
Constituída de plurais tipos de feminino que abraçou as/os LGBTQ+ em oposição ao masculino estrutural, surge a quarta “onda”, que busca desmascarar as ferramentas articuladoras do masculino tóxico.
E com o slogan “Meu corpo, minhas regras” presente na “Marcha das Vadias”, em 2013, o Brasil se articulou com as feministas do mundo. E foi em 2015, com a “Primavera das Mulheres”, que um grupo jovem chegou chegando e outros rios abraçam mares e novas ”ondas” se formam no horizonte.
Páginas estão sendo viradas. Há etcéteras a serem lidos.
*Arlete Parrilha Sendra é membra da Academia Campista de Letras