Arlete Parrilha Sendra - Em tempo de centenário
Arlete Parrilha Sendra - Atualizado em 17/01/2022 21:37
O tempo está sempre aberto às reticências!
Não é projeto nosso retomar e ou historicizar os remanescentes da Semana de Arte Moderna/1922, neste seu tempo centenário. Seu desdobramento, marcado por revoluções históricas, científicas, culturais e cognitivas, resultantes dos múltiplos pensares que mapearam os tempos, foi e é, indiscutivelmente, estudado em análises e críticas de verticais valores.
Parece-nos pertinente, entretanto, acentuar, repetindo o tantas vezes repetido e documentado, que lá, uma outra forma de pensar foi sendo arquitetada, como se desdobramento fosse de uma plural e torrencial forma de pensar, com real enfoque na cultura — palavra que nos chega pelo século XVIII — responsável não só por cartorizar pensares vigentes e em nascenças como também por documentar a crise de paradigmas em acontecência. Em todos os tempos.
Se rebobinarmos os registros dos antecedentes e acontecidos de 1922 — aqui nos centraremos na cultura — constataremos lá, inicialmente, um permanente processo de inovação, ora pelo desgaste das leis vigentes, ora pelas inovações que prenunciavam um outro perfil para um possível e desejável outro tempo. E o tempo que se abre em reticências, preenchia suas reticências com utopias, ora estetizando-as com palavras, cores, sons e ora vendo na cultura uma forma de viver como se um dever de casa fosse, ou como uma intensa e complexa experiência em realização.
Invenções e intervenções trazidas pelos novos pensares se interpuseram às ordens já estabelecidas e sob a rubrica de “modernismo” foram lá batizadas, determinando um outro co-viver e conviver. A cultura se tornou, então, lá, uma “fábrica de ordens”, expressão de Zygmunt Balman — 1988 — imiscuindo-se em todos os estamentos histórico-culturais, numa proposta de modelização do homem presente e do homem por vir.
Resultante das inquietudes que vão sendo digitalizadas na pele do tempo, a cultura, em nem sempre perceptíveis processos de mutação, às vezes por processos naturais, vezes outras, por tratos descumpridos, ou esperanças frustradas, às vezes em guerra consciente com as novas consciências dela nascentes, altera o rumo e o ritmo de seu desdobramento na busca de uma quimérica “leveza do ser”.
Paralelamente, em estranha e curiosa presença, o homem, em permanente construção e reconstrução semânticas, faz da vida um jogo, cujas regras feitas, refeitas e desfeitas no decurso do próprio jogo, fazem que a vida seja uma rede tecida com permanentes novos começos, e, partindo das imprevisíveis e surgentes semânticas, impõem ao homem metamorfosear-se em turista — sem direito a traçar seu roteiro e sem direção a seguir.
É neste apreender do tempo em que antagonismos são, binomicamente, constatáveis: o escultor e o esculpido, os pensantes e seu repetidores, os que fazem e os que são feitos, os desiguais em simulada igualdade, os guias e os guiados, nós e os outros, em ordens previamente estabelecidas e dentro de cânones arbitrária e compulsoriamente estipulados, convivemos mulheres e homens em cânones de permanentes desigualdades. Desde sempre. Não será co-vivemos?
E como não há romantismo em papel, realismo em papel, ou qualquer momento literário em papel, também não existiu ou existe um modernismo ou pós-modernismo em papel. Romântico, realista, moderno e/ou pós-moderno são nomenclaturas que, apenas e simplesmente, nomeiam o modus vivendi do homem, sua forma de estar e ser no mundo.
A estrutura global da cultura vivenciada por toda e qualquer sociedade não tem caráter estacionário e determinante como se vento fosse em sua especificidade de soprar, ou o rio em sua especificidade de fluir. Ou a saudade que, paradoxalmente, torna presença a ausência. A cultura, em sua contingência inquieta, insubordinada e rebelde, não se aceita monocraticamente administrada. E, curiosamente, isto não a faz um circo de anarquia. Policêntrica, ela vem trazendo em seu estar sendo a não hierarquia como traço de seu perfil assim desejado. Mas ainda não alcançado.
Dentro de sua não estrutura, a cultura se deixa deslocar ao longo das rotas que vão envolvendo-a em paradoxal assim ser ou não ser.
Documentada pela palavra — aqui nosso enfoque — a cultura nos mostra que o futuro é um passado em processo de realização, e dentro deste passado estão nossas utopias, nossos devaneios, nossas diferentes experiências de mundo em sua permanente provisoriedade, fazendo-nos ser as mesmas pessoas dentro de nosso permanente não mais ser.

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