Ou curto a vida ou me preocupo com ela. E, em ambos os casos, nada ou quase nada muda. Exemplifiquemos com o sul da Bahia. Poderia ser com o Norte Fluminense em 2007, 2008-09 ou 2012. Poderia ser com Belo Horizonte em 2020. Poderia ser com os tornados que destruíram cidades do sul dos Estados Unidos em 2021 ou com os incêndios que assolaram o Pantanal matogrossense e que anualmente assolam a Califórnia. Pouco se notícia a destruição causada anualmente pelos tufões no extremo oriente. Choveu torrencialmente na Europa e na China em 2021. A orla do Mediterrâneo foi assolada por incêndios devastadores também no ano que finda. As temperaturas têm subido de forma assustadora na Sibéria.
Quando acontece um desastre climático como o de 2008-9 no sistema Ururaí, afetando o rio Imbé, a lagoa de Cima, o rio Ururaí e a lagoa Feia em todo o seu entorno, aciona-se logo a Defesa Civil do município afetado. Pessoas são retiradas das áreas atingidas e alojadas em lugares públicos. A imprensa faz a cobertura dos desastres ouvindo pessoas afetadas. Estas relatam o que aconteceu com sua casa e seus pertences. A maioria agradece a Deus por ter saído com vida, embora perdendo tudo. Ninguém condena a injustiça divina, que poupa alguns e sacrifica outros. “Graças a Deus estou vivo!”. “Que Deus tenha pena dos que morreram”. Cá comigo penso que Deus não tem nada com isso, mas entendo o conformismo daqueles que perdem seus bens e parentes.
É mais fácil acreditar no budismo do que no cristianismo ou no islamismo nesses momentos. As religiões de matriz judaísta costumam centrar suas atenções em cada pessoa, caso ela seja bem-sucedida ou desgraçada na vida. As injustiças sociais e os desequilíbrios ambientais são, de certa forma, naturalizados. Dizer que algo foi naturalizado significa substituir a responsabilidade humana pelas forças da natureza. Como a maioria não acredita que a natureza aja sozinha, os desastres acabam sendo atribuídos à vontade de Deus. Até mesmo os cientistas sociais que trabalham com a noção de tempo sincrônico não se interessam muito pela dimensão temporal, pelos processos históricos.
Os historiadores econômicos, sociais e culturais costumam detectar origens humanas para infortúnios como inflação, custo de vida, empobrecimento derivado de causas sociais, representações mentais de fenômenos climáticos etc. É preciso mergulhar bem fundo para afastar Deus como responsável por desgraças. Vejamos o caso do Sudeste/Nordeste brasileiro. Poderia ser de todo o Brasil. Poderia ser da América do Sul ou do Norte. Poderia ser de todo o planeta. Mas, quando se enfoca um grande espaço em tempo muito dilatado, as pessoas, no geral, perdem o interesse. Não acredito que alguém, além de quem escreve, chegue ao final deste artigo.
Examinemos a região Sudeste/Nordeste do Brasil pelo ângulo da história. Vamos incluir nessa reflexão os fatores naturais, quase sempre esquecidos pelos historiadores. Quando os europeus chegaram à América do Sul, que não tinha nome, encontraram uma natureza luxuriante. Rios assustadores, como o São Francisco, e outros menores, mas bem maiores que os europeus. A extensa Mata Atlântica, que ainda não tinha esse nome. Povos considerados selvagens por andarem nus e não serem cristãos. O clima apresentava oscilações. Nos invernos, as chuvas escasseavam, mas a grande floresta funcionava como grande reservatório de água, liberando o que acumulara de forma equilibrada. Nos invernos chovia forte, mas as florestas absorviam os excessos. Os rios fluíam livres, pois não havia barragens.
Mas, produtos agrícolas foram introduzidos para atender aos interesses econômicos europeus. Para cultivá-los, a floresta foi progressivamente abatida. A Mata Atlântica foi reduzida a um percentual insignificante. O solo ficou exposto às intempéries. Muito gás carbônico foi liberado para atmosfera mesmo antes da revolução industrial e do uso de combustíveis fósseis. Os rios foram barrados para regularizar as cheias, reservar água e, mais tarde, para gerar energia elétrica ou transpor água para outro sistema. As mudanças climáticas provocadas por ação humana começaram já no século XVI. Os fenômenos climáticos naturais, como zonas de baixa e de alta pressão, frentes frias, zonas de convergência, El Niño e La Niña já existiam. Com as mudanças climáticas, eles foram potencializados.
Foi o que aconteceu no sul da Bahia no final de 2021. As chuvas abundantes decorrentes da formação de uma Zona de Convergência do Atlântico Sul encontraram rios barrados e cidades construídas em vales e junto a margens desmatadas de rios. A destruição da obra humana não tem precedentes no local. Não foi Deus, mas uma sociedade dominada pela economia de mercado e injusta, portanto, a responsável por tudo o que está acontecendo.