Arthur Soffiati - A estrada de Vila Rica a Campos dos Goytacazes (final)
Arthur Soffiati - Atualizado em 28/12/2021 13:45
A estrada Vila Rica-São João Batista, na barra do rio Bacalhau (os rios tinham mais importância no século XIX do que hoje), tornou-se um tronco de ramificação viária. Dali, partiam a estrada para Campos, seguindo o rio Pomba pela margem esquerda; a estrada para Abre Campo e para a Vila do Itapemirim, no Espírito Santo, que os autores confundem com Cachoeiro do Itapemirim. Trata-se de um erro tosco, pois, na segunda década do século XIX, Cachoeiro ainda não existia. Os autores também coroam D. João, Príncipe Regente, a rei anos antes de ele se tornar D. João VI, também outro erro elementar.
Aberta entre 1809 (provavelmente) e 1811 (o que sugere a existência do aproveitamento de caminhos já existentes), vários viajantes passaram por parte dela ou a percorreram em seu todo, deixando relatos e mapas, como João de Deus Lopes (1797), Eschwege (1815), Spix e Martius (1817), João do Monte da Fonseca (1812 e 1815), Langsdorff e Rugendas (1824), Silva Pontes (1833), João José da Silva Teodoro (1847) e Burmeister (1853).
Ela começava, como já dito, em Vila Rica, passava pelo Presídio de São João Batista, descia pela margem esquerda do rio Pomba, seguia pela margem esquerda do rio Paraíba do Sul até a foz do rio Boihé (Muriaé). A ligação entre a freguesia do Pomba e essa estrada foi autorizada por D. João em 1814. O legendário Guido Marlière desempenhou papel fundamental no processo de abertura da estrada e de ocidentalização de indígenas. A orientação do francês em Minas Gerais era integrar o índio sem violência. Nas proximidades da divisa de Minas e Rio de Janeiro, ergueu-se um posto de controle das pessoas e dos produtos transportados. Ficou conhecido como Registro do Pomba. Os autores situaram esse posto no atual município de Cambuci, pois há documentos sugerindo que ele se localizava no interior do curato confiado ao Pe. Antônio Martins Vieira, junto ao valão de nome Padre Antônio. Trata-se do valão D’Antas. Como o curato tinha grande extensão, parece que o Registro do Pomba se localizava na atual Aperibé.
Em 1815, Maximiliano de Wied-Neuwied voltou de São Fidélis por essa estrada, como descreve em “Viagem ao Brasil”: “penetramos [...] numa sombria e majestosa floresta, onde voejavam lindíssimas borboletas. Nesse lugar, vimos no rio, junto à margem, uma ilhota toda cercada de rochas escarpadas, na qual havia algumas velhas árvores, repletas de ninhos em forma de saco, de guache. Canaviais, arrozais, cafezais (estes raramente) e algumas plantações de milho sucediam-se. A corrente do Paraíba era recortada de encantadoras ilhas, umas cultivadas, outras cobertas de mato. À tarde, chegamos a uma planura perto do rio, onde havia importante fazenda entre verdes pastagens [...] Do outro lado do vale se elevam altaneiras montanhas, entre elas o morro da Sapateira, alta cadeia de vários picos [...] Na manhã seguinte, depois que nossos cavalos foram reunidos no campo, continuamos a viagem, e alcançamos, pelo meio dia, o Muriaé, que não é largo, mas profundo e rápido, e se diz causar grandes estragos nas estações das chuvas [..] Uma pequena canoa levou-nos pela corrente, e, à tarde, atingimos um lugar donde se vê, graciosamente situada, estendendo-se na margem oposta, a vila de S. Salvador.” (Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/edUsp, 1989).
Em 1818, o naturalista alemão George Wilhelm Freyress percorreu a estrada geral de Vila Rica até o Presídio de São João Batista. O relato deixado por ele recebeu o título de “Diário da viagem à tribo dos índios coroados, de G. W. Freyress, de 22 de dezembro de 1818, apenso a minhas anotações”. Ele foi inserido em “Jornal do Brasil: 1811-1817”, de Wilhelm Ludwig von Eschwege (Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 2002).
Com o subtítulo de “Novo caminho de Minas”, José Carneiro da Silva a descreve de forma resumida em livro de 1819: “Em junho de 1811 saiu em Campos o caminho que por ordem de Sua Alteza Real abriu-se de Minas, tendo de largura 40 palmos; nesse serviço andaram 80 homens comandados por um furriel. Perto de saírem em Campos faltou o mantimento, veio o dito furriel pedi-lo ao coronel Manoel dos Santos, este requereu à Câmara para o dar, esta não quis, então vários indivíduos ofereceram-se para concorrerem com a despesa que com efeito fizeram. Dizem que da 1ª povoação de Minas no rio Pomba tem 18 léguas e deste rio até onde saiu 14.” (Memória topográfica e histórica sobre os Campos dos Goytacazes. Campos: Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima, 2010).
Em 1837, a estrada já requeria reformas. Henrique Luiz de Niemeyer Bellegarde anota: “Acha-se esta estrada, se estrada se lhe pode chamar, em péssimo estado: pertence ela a nossa Província e a Seção a meu cargo desde o ribeirão de Sto. Antonio (porque aquela parte marca provisoriamente os limites entre Minas Gerais e o Rio de Janeiro, na forma do Decreto de 8 de Novembro de 1831, e Portaria da Secretaria de Estado da Justiça dirigida à Câmara de Campos em 24 de maio de 1833), e nesta percorre uma extensão de 19 léguas até a foz do Paraíba, onde os mineiros levam seus numerosos e variados produtos à exportação marítima; até a confluência do rio da Pomba com o mencionado Paraíba, segue a estrada, tendo com pequenos intervalos de uma parte o primeiro rio, acima de nível do qual chega a erguer-se até 400 palmos, e de outra as alcantiladas e medonhas montanhas das Frecheiras.” O ribeirão Santo Antônio chama-se hoje valão D’Antas.
A estrada geral de Minas a Campos dos Goytacazes favoreceu o desmatamento, a ocidentalização dos indígenas e mesmo o seu extermínio. Ela intensificou o processo de ocupação das terras em suas vizinhanças. Ao todo, foram concedidas 84 sesmarias entre 1812 e 1821 em que a estrada aparece como a principal referência. As primeiras sesmarias situavam-se a montante da barra do rio Pomba, dentro de Minas Gerais. No Rio de Janeiro, a estrada promoveu o desenvolvimento de núcleos urbanos como Miracema, Santo Antônio de Pádua (originalmente aldeamento indígena) e Cambuci. Por ela, Campos importava gado, muares, carne de porco, toucinho, queijos, couro para solas, curtidos e crus. De Campos para Minas, principalmente para freguesias e arraiais da margem esquerda do Pomba, eram exportados vinho, sal, molhados, bacalhau, aguardente do reino, secos, farinha de trigo, fazenda seca, chumbo, cobre, aço, enxadas, louça, frasqueiras, pau-brasil, escravos e animais (bois, cavalos, éguas e potros). O comércio tinha por principal destino a vila de Campos, seguindo pequena parte para a Aldeia da Pedra (Itaocara), Cantagalo e cidade do Rio de Janeiro. Um produto muito procurado era a poaia cinzenta, usada no tratamento de disenteria, febre de mau caráter, coqueluche e bronquite.
Os autores informam, muito baseados em documentos produzidos em Minas Gerais, que a última notícia da estrada Minas-Campos é de 1838, quando a câmara da vila da Pomba pediu sua reforma. Da parte deles ainda, há muita hesitação em colocar Campos na capitania/província do Rio de Janeiro ou do Espírito Santo. A cartografia do século XVIII mostra que a capitania do Rio de Janeiro se estendia de Parati ao rio Itabapoana. Por um acordo de 1742, a justiça no Distrito de Campos dos Goytacazes passou a ser administrada pelo Espírito Santo. Rui Barbosa teve essa clareza: a vila de Campos não foi subordinada administrativamente à capitania do Espírito Santo, e sim à ouvidoria capixaba, divisão judiciária equivalente a comarca.
Os documentos fundamentais para o conhecimento da ligação de Minas com Campos, segundo os autores, são: 1 - Relato do capitão Manuel José Pires da Silva Pontes (1833) e o mapa de Teodoro (1847). Este, de fato, é monumental. Ainda eles afirmam que não mais é possível percorrer de veículos o trecho entre Barra do Pomba a foz do Muriaé. Sim, é possível. A antiga estrada geral foi aproveitada pela RJ 194, de Aperibé à BR 356. Talvez seja possível ainda chegar-se até a foz do Muriaé. Carecemos agora de um estudo mais acurado da estrada no trecho fluminense e da estrada ligando Presídio de São João Batista a Itapemirim.
Leia também:

ÚLTIMAS NOTÍCIAS