Arthur Soffiati - A estrada de Vila Rica a Campos dos Goytacazes (I)
Arthur Soffiati - Atualizado em 13/12/2021 17:43
Antes da ferrovia e da rodovia, como eram feitas as viagens para fins comerciais, científicos e pessoais no Brasil? As distâncias eram percorridas a pé ou em montarias por estradas de terra. Em grande parte, trilhas abertas por povos indígenas foram aproveitadas pelos portugueses na abertura dessas estradas. No século XIX, tornaram-se frequentes as hidrovias interiores, ou seja, os canais de navegação.
No Norte-Noroeste Fluminense, o major Henrique Luiz de Niemeyer Bellegarde arrola as seguintes estradas: São João da Barra a Niterói pela costa; Campos a Niterói pelo interior; Campos a Cantagalo pela margem direita do rio Paraíba do Sul; Campos a Minas Gerais pelo rio Pomba; e Campos a Minas Gerais pelo rio Muriaé (“Relatório da 4ª Seção de Obras Públicas da Província do Rio de Janeiro”. Rio de Janeiro: Imprensa Americana de I.F. da Costa, 1837).
Quanto aos canais de navegação, quatro foram abertos no século XIX para fins comerciais, principalmente. O mais conhecido e estudado dos quatro é o canal Campos-Macaé, que promovia também o transporte de passageiros. Os canais de Cacimbas, da Onça e do Nogueira destinavam-se mais ao transporte de mercadoras de São João da Barra e do Sertão da Onça, sendo que o do Nogueira não foi concluído e não chegou a funcionar (SOFFIATI, Arthur. “Os canais de navegação do século XIX no Norte Fluminense. Boletim do Observatório Ambiental Alberto Ribeiro Lamego nº 2” (Edição Especial). Campos dos Goytacazes: CEFET- Campos, jul-dez 2007).
Recentemente, Lucas da Silva Machado, em dissertação de mestrado, estudou o porto fluvial do rio Itapemirim, em sua foz. Embora se dedicando a um único porto, ele demonstrou a grande importância da navegação de cabotagem e a relação de Itapemirim com São João da Barra, Campos, Rio de Janeiro e Vitória, principalmente [“No caminhos das águas: a trajetória histórica da Vila de Itapemirim e de seu porto (1800-1850)”. Vitória: Universidade Federal do Espírito Santo, 2021].
Também recentemente, foi publicado o livro “A estrada geral de Minas a Campos dos Goytacazes”, de autoria de Maria Joana Neto Capella, Angelo Alves Carrara e José Flávio Morais Castro (Juiz de Fora: Editora UFJF, 2021). Seria possível aos autores, formados em história, restringir-se aos documentos encontrados em arquivo, sem examinar a paisagem em que se estendeu essa estrada. Normalmente, historiadores têm preguiça de ir a campo ou mesmo ojeriza de sair do conforto dos gabinetes. No entanto, os três autores trabalharam com documentos de arquivo e tomaram a paisagem também como documento, fazendo três viagens pelas atuais estradas asfaltadas que se aproveitaram do traçado da estrada geral de Minas a Campos, que, por sua vez, valeu-se muito das trilhas abertas pelos povos indígenas da região.
O prefácio de Carlos Eduardo Villa chama a atenção para o desprezo devotado ao espaço pelos historiadores. Num estudo clássico de história, o território cortado pela estrada Minas-Campos seria ignorado, como se a estrada se estendesse sobre o nada. No máximo, seria uma variável, o pano de fundo, segundo o autor. Seria palco, nunca personagem. O estudo dos três historiadores, contudo, tem como resultado um mapa georreferenciado da estrada, produto só possível com o concurso de geógrafos. Trata-se, enfim, de um trabalho de história tradicional, ou seja, que se vale apenas de documentos de arquivo? Não. Ele vai além, ao considerar o espaço. Seria um estudo de geografia? Também não, embora recorra a ela. No máximo, o estudo se aproxima da história ambiental, mas não de forma incisiva. Os autores não situam a estrada em seu contexto geológico, fluvial e florestal.
Já existia uma estrada entre Vila Rica (atual Ouro Preto) e Presídio de São João Batista (atual Visconde de Rio Branco). Em 1809, 84 moradores do arraial de São João Batista assinaram uma petição à Coroa portuguesa manifestando o desejo de ligar a estrada existente a Campos dos Goytacazes. Já existia uma ligação entre a Zona da Mata Central e Campos, embora muito precária. A referência mais antiga sobre esse caminho encontrada pelos autores é um requerimento dos moradores de Mariana, Turvo, Tapera e Calambau enviado ao Visconde de Barbacena em 16 de dezembro de 1790. Em 1797, José de Deus Lopes, militar encarregado pelo governo de Minas de uma expedição de Presídio de São João Batista a São João da Praia do Mar, hoje São João da Barra, relatou sua viagem.
A ligação de Minas a Campos é forte indicativo de um comércio potencial ou real entre as duas capitanias, principalmente com Campos, importante polo econômico do Rio de Janeiro. Em 1815, o príncipe alemão Maximiliano de Wied-Neuwied escreveu que Campos era o mais próspero núcleo urbano entre Rio de Janeiro e Salvador. Além de adquirir produtos de Minas, Campos exportava muitos artigos e constituía um ponto de acesso ao porto marítimo de São João da Barra. Em fevereiro de 1800, o padre Francisco da Silva Campos (Presídio de S. João Batista) encaminhou um requerimento a D. João propondo a abertura de uma estrada do Porto das Canoas do rio Pomba até Campos.
Contudo, havia um problema. As riquezas minerais de Minas eram rigidamente controladas pela Coroa portuguesa. Havia, na capitania das Minas Gerais, várias áreas proibidas. “... As restrições ao povoamento e abertura de picadas no leste mineiro foram uma medida localizada, dirigida ao Sertão da Mantiqueira, na tentativa de inibir um processo de ocupação em curso e que pode ter atendido a interesses particulares”, escrevem os autores. Era natural que houvesse vozes a favor e contra a uma estrada geral que franqueasse riquezas ao Rio de Janeiro e ao Espírito Santo, sobretudo riquezas minerais. Luís Antônio Furtado de Mendonça, Visconde de Barbacena e ex-governador de Minas, era contra a estrada. Ele escreveu, em 9 de julho de 1801, a D. Rodrigo de Souza Coutinho, então ministro e secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos, um alerta quanto aos perigos dela: “A abertura da estrada para Campos do Goytacazes é contrária ao sistema antigo do governo, havendo repetidas ordens para se acautelar e vedar com a maior exação e vigilância toda a comunicação por aquela parte, a fim de reduzir a mesma comunicação aos dois únicos caminhos que eram permitidos para a capitania do Rio de Janeiro por causa do extravio do ouro, dos diamantes e dos direitos das entradas que se devem pagar (...) nos registros; porém eu entendo (...) que sendo oportunamente aberta a estrada de que se trata, de modo que possa ser facilmente guardada, e posto em lugar conveniente o mesmo registro, que esta será uma providência útil aos povos de ambas as capitanias e à Real Fazenda, promovendo-se a cultura e povoação de um vasto território, aproveitando-se talvez algumas madeiras e as drogas que se produzem nos matos, provendo-se de gados os moradores dos referidos campos.” Além do mais, a estrada funcionou como poderoso elemento de ocidentalização das nações indígenas e de povoamento. A Coroa portuguesa tinha interesse nela, apesar dos riscos.

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