Fui muito influenciado na minha formação de professor de história e de historiador por Arnold Toynbee. Ele escreveu o monumental “Estudo da história”, em mais de dez volumes. Sua análise distingue cultura de civilização. As culturas não desenvolveram a escrita, as cidades, o Estado, pelo menos. As civilizações acrescentaram às divisões territorial e social do trabalho ao lado das divisões sexual e técnica, já existentes nas culturas neolíticas. Segundo ele ainda, existem civilizações completas e incompletas, além das civilizações estagnadas.
Uma civilização completa, segundo ele, é aquela que nasce respondendo a um desafio natural ou social e cresce ainda em respostas a desafios que ela encontra. Seu auge é a criação de um Estado universal, ou seja, um Estado que abrange toda a civilização e até mesmo outras ou parte de outras. Exemplo: a civilização egípcia. Na sua origem, ela estava dividida em várias províncias independentes politicamente. Por força de uma delas, todas se uniram sob o poder do faraó. Criou-se, pois, um Estado universal, que se expandiu além das fronteiras da civilização e conquistou territórios de outras civilizações. Universal, para Toynbee, não significa o mundo todo, mas os limites de uma civilização e parte de outras. Mais um exemplo: o Estado constituído por Alexandre Magno com suas conquistas. Partindo da dividida civilização helênica, seu pai, Filipe, reuniu quase todas as cidades do Estado da Grécia. Alexandre conquistou territórios das civilizações siríaca, egípcia, mesopotâmica e persa. Se uma civilização não consegue responder aos desafios que lhe são colocados, ela entra em declínio e desaparece, como aconteceu com tantas do passado.
Quando uma civilização nasce respondendo positivamente a um desafio, mas não consegue se desenvolver frente a novos desafios, ela é incompleta ou abortada. Os cristãos nestorianos e monofisistas não conseguiram se desenvolver por pressão da civilização islâmica. As formas originais do cristianismo da Irlanda e da Escandinávia acabaram sendo engolidas pela civilização ocidental cristã e apenas deixaram suas pegadas. Os escandinavos são também conhecidos como vikings. Os esquimós, por exemplo, foram desafiados pela natureza gelada a desenvolver uma civilização, mas esse mesmo ambiente foi muito exigente e paralisou a civilização desse povo.
Hoje, depois de fazer muitas reflexões, concluo que não se pode falar em civilização completa, incompleta, abortada e estagnada. No mundo ocidental, a ideia de que a história cumpre um plano superior a ela mesma é muito comum. Trata-se de uma herança judaico-cristã que se imiscuiu na filosofia e nas ciências sociais e até naturais. Mesmo sendo ateu, Marx acreditava que a história caminhava para o comunismo através de etapas, uma das mais importantes sendo cumprida pela burguesia. Sem perceber, a burguesia cavava sua própria sepultura ao buscar seu desenvolvimento. De certa maneira, o evolucionismo de Darwin também foi capturado por uma visão teleológica para demonstrar que a vida caminha do simples para o complexo, sendo o ser humano o coroamento desse processo.
Toynbee, ao combater essa visão linear, ascendente, expansiva e finalista, acabou por reescrevê-la de forma diferente. A visão dos historiadores, pelo menos a minha, é a de que não há sentido na história. Não há rumo pré-definido. Não há um fim superior e definitivo. Portanto, não se pode falar em civilização completa. Dizer que uma civilização foi abortada por outra é acreditar que havia uma história a priori para ela que não se cumpriu. Não se pode dizer que algum povo ou alguém mudou a história, porque não sabemos qual é o seu rumo. Não podemos afirmar que um livro sobre um tema é definitivo, porque a ciência está sempre fervilhando, com novas pesquisas refutando as verdades anteriormente estabelecidas. A ciência é refutável, como escreveu Karl Popper. Ela não tem dogmas, como a religião. Portanto, em ciência, não há verdade definitiva. Nem mesmo há verdade provisória. Há abordagens científicas que se debatem.
Assim, o livro “Vikings: a historia definitiva dos povos do norte”, do arqueólogos Neil Price, já começa de forma equivocada, pois não há história definitiva de ninguém. A resenha dele por Reinaldo José Lopes, publicada na “Folha de São Paulo” em 24/11/2021, começa mal já no título: “Vikings mudaram o mundo com suas viagens, diz arqueólogo”. Acaso existia algum plano pré-traçado para ser mudado? Os vikings, de fato, invadiram a Inglaterra e a Rússia, mas não se pode dizer que esses países provavelmente não seriam o que são se não fossem os vikings. Eles influenciaram a Itália e as Cruzadas. Eles estimularam a criação de reinos na Inglaterra e na França. Eles chegaram à América do Norte antes de Cristóvão Colombo. Mas, tudo isso é a história, não algo inesperado ante uma história hipotética cuja rota não conhecemos. Assim, não se pode afirmar que uma pessoa, um acontecimento, um povo mudaram o rumo da história.