Pilar Quintana. “A cachorra”. (Rio de Janeiro, Intrinseca, 2020). Pequeno romance ambientado na zona costeira colombiana, onde mansões ricas têm ao lado casas pobres isoladas ou em aldeias. Os pobres vivem da pesca ou do pequeno comércio. No centro, estão Damaris e seu marido, Rogelio. Ela teve uma infância difícil. Seu grande sonho era ser mãe, o que não conseguiu. Tanto ela quanto seu marido consultaram um curandeiro caro, mas ela nunca conseguiu engravidar. “O casebre onde moravam não ficava na praia, e sim em um rochedo cercado de mata onde as pessoas brancas da cidade tinham casas de veraneio grandes e bonitas, com jardins, caminhos de pedras e piscinas.”
Ela pegou uma cachorrinha para cuidar. Na verdade, tentava compensar sua incapacidade de ser mãe. Tratava muito bem da cachorra. Acomodava-a em seu sutiã. Seu marido já tinha três cães, que tratava de modo rude. Ele não gostou que a mulher adotasse Chirli, nome da cachorra.
A casa pobre do casal ergue-se entre o mar e a floresta, dois sumidouros. Ela viu um jovem e um adulto serem tragados pelo mar ao caírem do penhasco, lambidos por ondas fortes. A floresta era também perigosa: “... formigas, milhares e milhares delas avançando pela selva como um exército (...) saíam de seus ninhos sob a terra e arrasavam com todos os bichos vivos ou mortos que encontrassem pela frente.”
A cachorra sumiu na floresta com os outros três cães. Os três voltaram, mas ela só apareceu 33 dias depois. O amor de Damaris pela cachorra se transformou em ódio quando ela apareceu grávida. “Damaris não suportava vê-la. Era uma tortura encontrá-la cada vez mais barriguda quando abria a porta do casebre.” Mas voltou a tratar bem dos filhotes, sobretudo quando “A cachorra se revelou uma péssima mãe. Na segunda noite comeu um dos filhotes e nos dias seguintes abandonou os três que restaram para sol na plataforma da piscina...”
Damaris vive sentimentos polarizados: alegria em pensar ser mãe. Logo depois, tristeza por não engravidar. Amor pela cachorra até ela ficar prenhe, como se ela acentuasse mais ainda a incapacidade de Damaris como mulher. Pobreza grande com certos momentos de conforto. Vida e morte. Sobretudo, polarização entre mar e floresta, ambas imensas bocas devoradoras.
Samanta Schwblin. “Distância de resgate” (Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2016).
Um dos livros mais tensos que conheço. Ele arranha as raias do sobrenatural. A autora escreve de forma densa e nervosa, como de um só fôlego, embora haja diálogo. Duas mulheres: Amanda e Carla, com seus filhos Nina e David. Outras pessoas são mencionadas, mas a trama centra-se nesses quatro. Amanda diz: “Sempre penso no pior. Agora mesmo estou calculando quanto demoraria para sair correndo do carro e chegar a Nina, se ela corresse de repente para a piscina e se atirasse. A isso dou o nome de ‘distância de resgate’, que é como chamo a distância variável que me separa da minha filha, e passo a metade do dia fazendo esse cálculo, embora sempre arrisque mais do que deveria.”
Essa é a preocupação que permeia todo o livro. De fato, estamos sempre preocupados com a distância de resgate, mesmo sem pensar nela. Estamos sempre atentos para o perigo ou para o que poderíamos ter feito, caso a realidade não acompanhe nossas expectativas. Não apenas no espaço, mas também no tempo, existe a distância de resgate. Por que escolhemos um cônjuge e não outro? Como poderíamos resgatar uma trajetória que não se realizou. Como podemos resgatar o tempo perdido. Como podemos salvar uma pessoa. Por que não nos ativemos a um determinado perigo?
No livro, também está presente um clima de envenenamento no ar. Ele está ambientado na zona rural. David se contamina em nível mortal. Uma curandeira o salva dividindo seu mal com outra pessoa desconhecida para o leitor. O menino parece ganhar poderes sobrenaturais. Ele conversa como se previsse o futuro. Sua pele ficou manchada. Vermes aparecem com frequência no livro.
O clima é de sonho. Melhor, de delírio, de pesadelo. Não se sabe se se trata de realidade vivida ou imaginada. Podemos admitir que se trata de uma fábula sobre a tecnificação do mundo, da industrialização da agricultura, da invasão do campo pelo urbano. A conclusão do livro é sintomática: “Não vê os campos de soja, os riachos entretecendo as terras secas, os quilômetros de campo aberto sem gado, as vilas e as fábricas chegando à cidade. Não repara que a viagem de volta foi se tornando cada vez mais lenta. Que há carros demais, carros e mais carros cobrindo cada nervura de asfalto. E que o trânsito está parado, paralisado há horas, fumegando efervescente. Não vê o importante: o fio finalmente solto, como um pavio aceso em algum lugar: a praga imóvel prestes a irritar-se.”
María Fernanda Ampuero. “Rinha de galos” (Belo Horizonte: Moinhos, 2021). Ampuero nasceu no Equador em 1976. “Rinha de galos” é seu primeiro livro de contos. O ponto quase comum aos contos é a narrativa geralmente feita por meninas e mulheres. Só um conto é narrado por um menino. Quase todos são marcados pela escatologia, descoberta da sexualidade, violência. A autora trata a sexualidade de forma direta, sem subterfúgios. Os órgãos são tratados por seus nomes chulos. As relações sexuais são também explícitas. “Ele tem o púbis sem pelos e o pau morto, mas continuou e continuou e continuo até que ele fica duro e continuo mais ainda, até que ele goza na minha boca e eu engulo aquilo que tem cheiro de mostarda Dijon e cloro.” Alguns contos acercam-se do terror provocado por sugestões sobrenaturais, como em “Nam¨. Em “Monstros”, o terror está nos vivos e não nos mortos. As mulheres geralmente são dondocas. Algumas têm passado de pobreza e ostentam riqueza. As pessoas são más. Em “Luto”, a autora parodia a passagem bíblica de Lázaro. Maria e Marta eram castigadas por Lázaro (cujo nome não é mencionado). Ele castiga Maria, surrando-a, estuprando-a, deixando que outros abusem dela. Deixa-a ao relento. Mas ele acaba acometido de doença. É a lepra. Embora tratado por Marta, ele morre. As irmãs sentem-se libertas. Uma delas está toda marcada por cicatrizes e mutilações. Elas festejam a morte do irmão. No entanto, Jesus, também não nomeado, ressuscita Lázaro. A autora parece cética e antirreligiosa. Embora seja uma nova voz na literatura hispano-americana, os contos ainda demonstram pouca maturidade da autora.
Fernanda Merchor. “Temporada de furacões” (São Paulo: Mundaréu, 2020). O livro de Fernanda Merchor caminha no realismo e no regionalismo, mas não no sentido tradicional. Passado numa pequena cidade do interior do México e arredores, o realismo é temperado com uma pitada de magia, ao focalizar a história de um homossexual travestido de bruxa que é assinado por homens jovens interessados na sua suposta riqueza. Essa pitada parece vir de Gabriel García Marques, a seguir a declaração da própria autora em nota do final. O regionalismo não é o de Graciliano Ramos nem o dos regionalistas brasileiros que dominaram a literatura entre 1930 e 1955. É o regionalismo esgarçado de Ronaldo Correia de Brito. O regional já está contaminado pelo global. Televisão, celular, empresa multinacional de petróleo ao lado da plantação de cana e da fabricação de aguardente. Pobreza, prostituição, drogas, homossexualismo, doença e violência, muita violência pública e privada, crendices. A própria maneira de escrever da autora retrata essa violência crua. A autora não tem papas na língua. O romance não pede sutileza em termos de sexualidade e violência. Escrita densa e cerrada, sem parágrafos do princípio ao fim. Há pontos, mas não parágrafos.