O ano de 2021 foi marcado pelas distopias na literatura. Pelo menos, dez livros que li retratam um presente ou um futuro sombrio. Nesse artigo, comentarei apenas livros de 2021 que entenderam o mundo de forma trivial.
João Anzanello Carrascoza, em “Tramas de meninos” (Rio de Janeiro: Alfaguara, 2021), segue fiel à sua abordagem da humanidade em seus escritos. O mundo é o Brasil, mas sem mencionar nomes de lugares. Existem sempre uma pequena e uma grande cidade que estão em comunicação por meio de parentes. É o pai ou a mãe que reside na pequena cidade e os filhos que foram para a cidade grande, refletindo assim a própria vida do autor, nascido em Cravinhos e morando em São Paulo. O amor está presente até no ódio. A mulher apanha do marido de modo que os filhos pequenos percebam. A mulher chega mesmo a perder dentes, mas faz as pazes com o marido sempre. Um dia, ele morre baleado por um assaltante. É comum, nos seus escritos, que os homens sejam donos de casas comerciais ou alfaiates. Aparecem viúvos que amavam muito suas esposas. Agora, vivem sozinhos e aguardam visitas dos filhos, que são tratados amorosamente.
Num conto, uma mulher prepara-se para abandonar o marido e leva seu filho ainda criança. Mulheres grávidas conversam sobre seus futuros. Nada acontece como o planejado. A morte está sempre por perto. Ela impacta os vivos, mas faz parte da realidade. Como nos demais livros, Carrascoza impregna seus romances e contos de intimismo e delicadeza. Mas, nesse livro, o conteúdo não justifica o título. Existem poucas tramas de meninos.
Depois de “Torto arado”, Itamar Vieira Junior precisa trabalhar bastante para lançar outro livro. Não que “Torto arado” seja um livro que corresponda à altura as palavras tão elogiosas da crítica e todos os prêmios recebidos. Itamar Vieira Junior escolheu um território meio árido para caminhar nos dias de hoje: o regionalismo. A globalização tende a sepultar o regionalismo e jogá-lo para o passado. Ronaldo Correia de Brito trabalha com um regionalismo esgarçado pelo processo da globalização. Um regionalismo híbrido, por assim dizer, que mistura jegue com celular, chapéu de couro com motocicleta. “Doramar ou a Odisseia”, o novo livro de Itamar, reúne contos do seu segundo livro, “A oração do carrasco” (2017), e contos inéditos. Não é um livro totalmente original. O mercado hoje exige das pessoas de sucesso que permaneçam na crista da onda. Itamar foi alçado a ela. Precisa permanecer lá. Será que “Doramar” garante a permanência do sucesso obtido com “Torto arado”?
O terreno em que se movimentam os personagens do seu novo livro é o mesmo de antes: o passado, os pobres, os mestiços, os negros, os índios. A natureza também não lhe é indiferente: “Meus pés agora atravessam a floresta sem vida, onde não cantam pássaros, onde não andam cutias, onde as folhas acenam em permanente despedida.” Trata-se de um floresta nativa autêntica substituída por monocultura de eucalipto. Sua prosa é poética, repleta de ternura, de amor pela família, pelos velhos, pela vida.
Ele vai ao passado para contar histórias de escravizados. No conto “O que queima”, ele intercala duas histórias: a do índio Som-de-pé e a de um casal de classe média. O fogo as une. Mas Som-de-pé parece nome de índio pele vermelha, como Touro-sentado, por exemplo. Uma negra escravizada que só consegue a liberdade matando seus senhores. Uma liberdade mal resolvida, repleta de medo está no conto “Alma”. Ele mostra resistência, mas ao mesmo tempo a necessidade de sempre fugir. “A oração carrasco” vem de outro livro. Trata dos carrascos, que nivelam os diferentes projetos de vida com a morte em cumprimento a uma sentença. O conto tem um forte cunho político, embora flerte com o piegas. Em “O espírito aboni das coisas”, Itamar se vale do “Dicionário jarawara-português”, de Alan Vogel, para narrar a história de um bravo guerreiro dessa nação. “Meu mar” enfoca a travessia de imigrantes pobres de Dakar para o Brasil. O conto que dá nome ao livro mostra a travessia de Doramar, um mulher pobre que trabalha como empregada doméstica, da infância à velhice.
A sexualidade aflora nos contos. É uma espécie de pan-sexualidade sempre muito bem dosada, insinuada, com palavras medidas. Mas, no final, concluo que se trata de uma prosa bem comportada, que não ousa, que acaba se tornando algo monótona.
Em seus últimos livros, Sérgio Sant’Anna se mostra melancólico e nostálgico. É natural que esse estado de espírito se manifeste em pessoas criadas num tempo e envelhecendo noutro. A década de 1990 mostrou-se crucial nessa mudança. Passou-se de um mundo analógico para um mundo digital. No plano da sexualidade e dos gêneros, muitas mudanças se operaram. A corporeidade do passado está sendo substituída pela virtualidade.
Os contos, novelas e romances de Sérgio Sant’Anna não são inteiramente ficcionais. Há neles muito de suas impressões pessoais sobre artistas, por exemplo. Nos últimos escritos, que ele chamava de narrativas, o autobiográfico é muito presente. Ele falava de si na terceira pessoa.
Sérgio foi uma das vítimas da Covid-19 em 2020. Ele deixou narrativas curtas e uma novela inéditas em livro, embora seus admiradores já as conhecessem. Gustavo Pacheco reuniu esses escritos em “A dama de branco” (São Paulo: Companhia das Letras, 2021). São 17 narrativas breves e uma novela. Nelas, Sant’Anna mostra-se por inteiro. O conto que dá nome ao livro é um exercício de voyeurismo. A sexualidade também é muito forte nele. Em “Anticonto”, ele registra que o ato de escrever exige disciplina. Parar de escrever também exige o mesmo. Um personagem proclama que “Os celulares são a praga do mundo moderno, mas às vezes são necessário”, refletindo por certo o próprio pensamento de Sant’Anna.
Para uma pessoa que viveu numa cidade em que a natureza estava mais presente, o soterramento dela pela urbanização, pelo desmatamento, pela poluição fere a sensibilidade. Parece ser o autor que fala pela boca de um personagem que vê o Brasil governado por um presidente estúpido: “a própria natureza fora exaurida até um ponto inacreditável, com árvores derrubadas, florestas pegando fogo, matando os animais, os índios atacados, e os mares, as melhores praias, o oceano impregnado pelo óleo grosso e viscoso.”
Onde talvez Sant’Anna perca a mão é na novela “Carta marcada”, que narra a trajetória de um homem com forte sexualidade. Ele se sente atraído pela namorada, pela sogra e por uma cunhada ainda pré-adolescente. Depois de casado, trabalhando num escritório de advocacia, ele passa a beber e se torna alcoólatra. Ele se excita em manter relações sexuais com a esposa enquanto ela dorme. Mais tarde, ele reencontra a cunhada já casada e mantém um caso quase secreto com ela, mais tarde encerrado. Embora advogado, ele odeia a profissão por entender que os advogados são profissionais prostitutos. Sua vingança é acusar um feminicida que contratou o escritório em que trabalhava. Ele foi o advogado de defesa e contribuiu mais para a condenação do cliente do que a promotoria. A juíza que determinou a pena do réu é feminista e homossexual. Mesmo assim, presenteia a bela atuação do advogado com sexo oral. Ele termina seus dias como alcoólatra. A novela narra sua vida aos Alcoólicos Anônimos. São fantasias sexuais muito escancaradas que tangenciam a pornografia.
Apresentada por Itamar Vieira Júnior (que parece convidado por autores novos desejosos de respaldo), Paulliny Tort lança “Erva brava” (São Paulo: Fósforo, 2021), seu primeiro livro de contos (virão outros?). Todas as narrativas se passam no vilarejo de Buriti Pequeno, onde o rio Amanaçu está bastante presente. Buscará a autora alguma espécie de retorno à literatura regionalista? Em parte sim, em parte não. Seus tipos são interioranos, mas “O rio Amanaçu agora fede, às vezes mais que fossa. Ficou assim depois das granjas de galinha e de porco, que despejam o mingau dos esterqueiros na água [...] a vila apodrece e os peixes morrem afogados na merda.” O interior do Cerrado seria assim uma espécie do atual sertão nordestino de Ronaldo Correia de Brito? Também não porque falta à autora a força do escritor pernambucano. É possível que uma vila do interior de Goiás apresente motivos para doze contos? Claro que sim. Com talento, pode-se escrever muitos contos sobre uma casa habitada ou não.
Por enquanto, Paulliny Tort não se insere na trilha de Hugo de Carvalho Ramos, Bernardo Élis (no livro, há um conto que parece ser inspirado nele), José J. Veiga, Davi Arriguci Jr e Ricardo Guilherme Dick, todos eles oriundos do Centro-Oeste do Brasil. Mas é cedo. Tort foi semifinalista do Prêmio Oceanos de 2017 com o seu romance de estreia”, Allegro ma non troppo”. Da minha parte, deixo lavrado meu descontentamento com a literatura brasileira atual.