Adélia Noronha - Escritoras mortas e vivas
*Adélia Noronha 15/11/2021 18:00 - Atualizado em 15/11/2021 18:02
Em meio a muitas atividades, tenho procurado livros de escritoras que já morreram e daquelas que vivem e continuam escrevendo. Não se trata de reler, mas de ler pela primeira vez obras que deveria ter lido quando mais jovem ou de simplesmente esquecer que não li e dar o caso por encerrado. Afinal, quem se importaria comigo? Com o que li ou deixei de ler, num mundo digital em que a escrita está se resumindo a desenhos muito mais simples que os das escritas pictográficas? Sistemas de escrita como o sumeriano, o egípcio, o chinês, o japonês e outros exigiam especialistas. Eram os escribas, que dedicavam a vida toda ao domínio da escrita e se tornavam especialistas. Hoje, não é necessária a especialização. Todos sabem procurar nas redes sociais um polegar pra cima ou pra baixo, bem como uma boquinha e um coraçãozinho.
Gosto de ler livros antigos e esquecidos. Não se trata de ler clássicos gregos, latinos e ocidentais. Falo de autores datados, que escreveram sobre seu tempo. De autores considerados secundários. De livros classificados de sub-literatura que continuaram nessa condição ou foram elevados com o tempo à condição mais elevada. Pela primeira vez, li Cassandra Rios, pseudônimo usado por Odette Pérez Ríos. Ela foi alvo preferencial da ditadura militar brasileira por conta de seus livros. Trinta e seis de seus 50 livros foram censurados. Muitos deles tratam do homossexualismo feminino. Ela era assumidamente lésbica. Foi a primeira escritora brasileira a viver dos rendimentos oriundos da venda de seus livros. Ela e seus leitores foram vítimas da ditadura. Quando passou a escrever com pseudônimo masculino, foi mais tolerada.
Além de perseguida pela ditadura, Cassandra era discriminada pela crítica especializada, que entendia seus romances como apelativos junto à classe média. As famílias moralistas também não gostavam dela. Alguns títulos seus falam do conteúdo: “Volúpia do pecado”, “Carne em delírio”, “As vedetes”, “Tara”, “Uma mulher diferente”, “Nicoleta ninfeta”, “Prazer de pecar”, “Eu sou uma lésbica”.
Dela, li “Copacabana posto 6” (Rio de Janeiro: Spiker, 1961), que adquiri num sebo.
O tema é homossexualismo feminino. A personagem central é Carla, moça lésbica de família rica. Seu pai é um homem à moda antiga que se casou e teve um casal de filhos. No decorrer do livro, descobre-se que Carla é filha da tia, irmã da mãe, com quem o pai teve um caso. Relação entre cunhados era alvo da literatura na época. Vide Nelson Rodrigues. Ela foi adotada. A mãe morreu, e o pai se casou com uma brasileira que vivia na França e era muito mais jovem que ele. Carla entendia que ele devia se casar com a tia para reparar um mal. O irmão era conquistador. Ambos não faziam nada. Nem estudo nem trabalho. Viviam das rendas paternas.
Carla frequentava uma boate de lésbicas em Copacabana e levava seus amores para casa. Ela e a madrasta se apaixonam e vivem um amor tórrido. As duas acabam abandonando a casa para viverem juntas. Carla se pergunta se o homossexualismo é um defeito ou se é natural. Ela tende a considerá-lo natural, embora, numa passagem do livro, desconfie que ele deriva de ter ela uma história sofrida. No mais, é assumida. Tem corpo de rapaz e se veste nas lojas Príncipe, cujo lema era “veste hoje o homem de amanhã”.
No livro, desfilam gírias da época e letras de música que foram sucesso nos anos de 1950 e 1960, compostas e cantadas por Miltinho principalmente. Em certos momentos, Carla não consegue evitar os preconceitos do seu tempo. Contudo, o mais interessante é que Cassandra Rios escreve bem. Se seu tema não fosse o lesbianismo, talvez merecesse mais atenção da crítica. Ela sabe criar momentos de tensão e prender o leitor. Sou exigente e me surpreendi desejando ver as cenas dos próximos capítulos. Contudo, não disponho de tempo para ler outro livro dela.
Elvira Vigna morreu com 70 anos em 2017. Carioca de nascimento, viveu em São Paulo. Começou sua vida profissional como jornalista e ilustradora, tornando-se uma das maiores ficcionistas da atualidade. Além de escrever para adultos, ela escreveu para crianças e jovens. Conhecendo o tom amargo e desiludido de seus romances para adultos, fica difícil imaginá-la escrevendo para crianças e adolescentes. A autora foi premiada tanto como escritora quanto como ilustradora.
Seu primeiro romance adulto foi “Sete anos e um dia”, de 1984, só publicado em 1988. Daí em diante, ela nunca mais parou de escrever. Os títulos de seus livros são meio inusitados: “A um passo de Eldorado” (1990), reeditado como “A um passo” em 2004; “O assassinato de Bebê Martê” (1997); “Às seis em ponto” (1998); “Coisas que os homens não entendem” (2002), “Deixei ele lá e vim” (2006); “Nada a dizer” (2010); “O que deu para fazer em matéria de história de amor” (2012), “Por escrito” (2015), “Como se estivéssemos em Palimpsesto de putas” (2016).
Vigna afirmava que todos os seus romances eram baseados em pessoas, lugares e fatos reais, que aconteceram pessoalmente com ela ou com pessoas próximas, bastando-lhe encontrar o narrador para suas histórias. Quando ela envolvia outras pessoas, a autora mudava algumas características e fatos para que as personagens não pudessem ser reconhecidas. Ela sempre teve o cuidado de pedir permissão aos envolvidos para a publicação de seus livros. Seus escritos não são explicitamente políticos, mas possuem camadas narrativas que podem trazer um olhar político implícito, uma maneira muito única de ler as relações interpessoais.
Li “Coisas que os homens não entendem”, romance de 2002. Ele narra um caso de assassinato que misteriosamente não foi desvendado pela polícia ou arquivado como caso insolúvel. Uma das pessoas que estavam na cena do crime era uma mulher jovem e bonita que começou a trabalhar como jornalista na redação de um jornal em que só havia homens. Ela se torna amante de um jornalista em cuja família acontece o crime. Foi num apartamento de Santa Tereza. A jovem se transfere para Nova Iorque. Anos depois, ela retorna ao Rio de Janeiro e luta consigo mesma para não voltar a Santa Tereza. “Amanhã decido se vou a Santa Tereza. E na verdade falo Santa Tereza, mas ir lá é a mesma coisa que ir para bem longe de lá, porque lá não haverá mais nada, eu mais uma vez fingindo que volto a um lugar quando na verdade estou indo para longe dele.” Mas não resiste. A capacidade da autora de descrever espaços é notável. Ruas, bares, prédios, detalhes do apartamento em que ocorreu o assassinato, a movimentação quase maquinal das pessoas. “A música acontece nos botequins, são sambas antigos, tocados em pandeiro, cavaquinho e tamborim e que são instrumentos de homens (...) Mulher não toca, mulher canta e dança”.
Afinal, quem teria cometido o crime? É a pergunta que perpassa o livro do princípio ao fim. O título do livro é tomado de Camões. Parece, contudo, que não só os homens, mas também as mulheres não entendem certas coisas. Dentro de si, a moça está pacificada e retorna para Nova Iorque, passando no Norte e no Nordeste do Brasil. Tendo sido amante do pai, ela se torna amante do filho. Não é dos melhores romances de Vigna, mas sua marca inconfundível está nele.
Maria Valéria Rezende é freira da Congregação de Nossa Senhora - Cônegas de Santo Agostinho. Ela tem uma história política de lutas contra o regime militar que dominou o Brasil entre1964 e 1985. É formada em língua e literatura francesas pela Universidade de Nancy e em pedagogia pela PUC-SP. Trabalhou com educação popular em diversos lugares do Brasil e do mundo. Publicou vários livros e artigos de não ficção. Hoje, mora na Paraíba.
Começou na literatura em 2001, com o livro “Vasto Mundo”. Seus mais conhecidos livros são “O voo da guará vermelha” (2005), “Quarenta dias” (2014), “Outros cantos” (2016) e “Carta à rainha louca” (2019). Seu primeiro livro de contos é “Modo de apanhar pássaros à mão”, de 2006, que acabo de ler. Hoje, ela é uma escritora consagrada e premiada. É uma das que mais aprecio. Li com atraso “Modo de apanhar pássaros à mão” (Rio de Janeiro: Objetiva, 2006). São contos de uma principiante, mas já demonstrando qualidade. Todos eles têm a marca da autora. Todos muito humanos, muito ternos, muito sensíveis. Anotei, ao fim do conto “Lamento para harpa e tuba”, que ele nunca deveria acabar. Creio mesmo que ele daria um bom romance. “O homem invisível” é quase uma crônica sobre o amor. “A princesa de Troia” versa sobre o ódio. “A bicicleta” trata da morte. “Metamorfose” é um conto criativo dedicado a Frei Beto. No final, fica-se sabendo que o personagem central é um vampiro que abandona a Europa e se transfere para a América, substituindo sangue humano por bifes sangrentos.
A leitura dos contos foi como que um ajuste de contas que fiz com a autora e com os livros do passado que não consigo mais ler por falta de tempo.

ÚLTIMAS NOTÍCIAS