Arthur Soffiati - Engenhos, açúcar e doces (II)
Arthur Soffiati 04/10/2021 14:54 - Atualizado em 04/10/2021 16:59
Se os povos nativos (pioneiros) do Brasil trouxeram contribuição à alimentação do brasileiro, deve-se reconhecer a influência dos guaranis, como demonstram Carlos Alberto Dória e Marcelo Corrêa Bastos em “A culinária caipira da Paulistânia” (São Paulo: Fósforo, 2021). A área caipira se estende, mais ou menos, de São José dos Campos/SP a Caratinga/MG. Quase todo o vale do Paraíba do Sul está contido nela. O Noroeste Fluminense a integra.
O contributo das nações africanas foi enorme. No Brasil, os africanos não só absorveram as influências portuguesas como trouxeram a sua contribuição e ainda promoveram mudanças. Mariana de Castro Pareja Galves ensina receitas de doces africanos como amoda, aponon, baba de moça, bolinho de estudante, cocada, puxa-puxa, cuscuz, lelê, mungunzá, pé-de-moleque e quindim (“A culinária africana no Brasil”. Votorantim (SP): edição do autor, 2017). A influência africana foi mais acentuada na Bahia que em outras partes do Brasil. Assim, Guilherme Radel não fala em influência africana na doçaria portuguesa, mas reconhece uma doçaria baiana (“A doçaria da Bahia”. Salvador, edição do autor, 2014). O autor mostra como a culinária baiana incorporou abacaxi, araçá, abóbora, acerola, açúcar, aipim, ameixa, amêndoa, amendoim, araruta, arroz, banana, banha, batata-doce, baunilha, biribiri, cachaça, café, cajá, caju, canela, cará, carambola, carimã, castanha de caju, coco, chocolate, cravo, erva doce, farinha de trigo, fubá, fruta-pão, goiaba, groselha, inhame, jaca, jenipapo, laranja, leite, leite-de-coco, leite condensado, limão, macaxeira, maisena, mamão, mandioca, manga, mangaba, manteiga, maracujá, marmelo, mel, milho, nata, noz, ovo, pitanga, polvilho, queijo, rapadura, sal, tamarindo, tapioca, umbu, etc. Os quatro continentes estão presentes na culinária baiana, que não é mais a portuguesa ou a africana modificada, e sim uma nova culinária originária de várias influências.
Os estados do Brasil que se destacam com doçaria típica são o Pará, estados do Nordeste, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. No Pará, as frutas amazônicas são muito usadas nos doces, destacando-se o cupuaçu e o bacuri, assim também como a castanha do Pará e a tapioca (Paulo Martins. “Culinária paraense”. Belém: Instituto de Educação e Cultura da Amazônia, 2005). Em Minas Gerais, usa-se muito o leite, o queijo e a goiaba nos doces. São bastante conhecidos o doce de leite, o de mamão com abóbora, a ambrosia, a goiabada, o pé-de-moça, o rocambole, o doce de casca de laranja-da-terra, o figo em calda e o doce de queijo. Lá, também é bastante conhecido o chuvisco, doce que, com a goiabada e a ambrosia, são populares em Campos. No Rio Grande do Sul, é grande a influência alemã e italiana. Mas a base é portuguesa, como mostra o livro “A doçaria tradicional de Pelotas” (Rio de Janeiro: Senac Nacional, 2003). No século XIX, pode-se já falar numa doçaria tipicamente brasileira resultante das influências predominantes de Portugal e África, ao lado de influências menores de outros países, como mostrou Antonio José de Souza Rego em “Dicionário do doceiro brasileiro”, cuja primeira edição data de 1892 (São Paulo: Senac, 2010).
Existem restaurantes no Brasil especializados em culinária portuguesa, como mostram Anselmo Neves, Everaldo da Silva, Roberto Leal e Manuel Gonçalves em “A culinária portuguesa no Brasil” (créditos difíceis de encontrar). Podemos encontrar, no Brasil, restaurantes com culinárias de todos os países do mundo. Mesmo a doçaria portuguesa não é uniforme em Portugal, como mostra o livro “Doçaria regional portuguesa” (Noronha, Leonor e Brissos, Susana. Sintra: Impala, 2001). Mesmo as gastronomias portuguesas de hoje não são mais as mesmas mostradas por Sônia Monteiro (“Gastronomia portuguesa” dos anos 30. Lisboa: Ulmeiro, 2000).
O território que futuramente será a base do Norte do Rio de Janeiro começou com o nome de capitania de São Tomé, doada a Pero de Góis. Ele se estendia, com certeza, do rio Itapemirim até supostamente o Macaé. Pelos documentos, fica-se sabendo que seu donatário começaria a colonização com a produção de açúcar. Associado ao comerciante Martim Ferreira, ele ergueu a Vila da Rainha, sede da capitania, na margem direita da foz do rio Itabapoana. Nas proximidades dela, construiu dois pequenos engenhos. Subindo o rio Itabapoana até a última cachoeira, construiu ali um engenho movido a energia hidráulica. Não se tem muitas informações dessa experiência colonizadora, a primeira da região. Dela restaram ruínas do porto construído junto à cachoeira. Sabe com certeza que o açúcar comandou a iniciativa que durou apenas seis anos. Consta que Gil de Góis, filho de Pero, empreendeu uma nova tentativa de colonização da capitania ainda no século XVI, na foz do rio Itapemirim, onde teria erguido a vila de Santa Catarina das Mós. O açúcar continuava sendo a mola propulsora da colonização. Também fracassando, Gil de Góis devolve oficialmente a Capitania de São Tomé à Coroa Ibérica, em 1619 (Arthur Soffiati. “O norte do Rio de Janeiro no século XVI à luz da história mundial e da eco-história”. Rio de Janeiro: Autografia, 2019).
Ao saber do abandono, sete fidalgos e as ordens dos Jesuítas e dos Beneditinos requerem sesmarias dentro da antiga capitania. Os sete fidalgos, que passaram à história com o nome de Sete Capitães, chegam primeiro com a intenção de criar gado que pudesse atender ao Rio de Janeiro. Eles chegam às terras doadas em 1632, iniciando a colonização contínua da região que se transformaria no Norte Fluminense. A cana foi introduzida quase ao mesmo tempo que o gado. Em 1657, André Martins da Palma registra: “... pela muita fertilidade da terra há nela muitos canaviais de canas de açúcar e a terra em si com tanto assento para engenhos de água que todos se meterão no emprego delas [...] rio tão grandioso que poderá mover mil engenhos sem lhes fazer falta água, carnes, lenhas, por tudo ser em tanta abundância, e a terra tão fecunda que para tudo há sem detrimento...” (“Representação sobre os meios de promover a povoação e desenvolvimento dos campos dos Goitacazes em 1657”, publicado na “Revista Trimensal do Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico do Brasil” tomo XLVII, parte I. Rio de Janeiro: Laemmert, 1884). A cana ganhará tanto desenvolvimento quanto o gado.
A “Relação” do Marquês de Lavradio mostra a multiplicação exponencial do número de engenhos e engenhocas no distrito de Campos dos Goytacazes, o que pressupõe o avanço dos canaviais primeiro sobre os campos da planície aluvial e depois sobre os tabuleiros da margem esquerda do rio Paraíba do Sul, com a derrubada da luxuriante floresta estacional. Até o ano de 1769, havia 56 engenhos e 745 engenhocas. Daquele ano a 1778, o número de engenhos se elevou a 104, e o de engenhocas a 1010. E novas unidades estavam sendo construídas (LAVRADIO, Marquês de. “Relação que acompanha o Relatório entregando o governo a Luiz de Vasconcellos e Souza, que o sucedeu no Vice-Reinado”. “Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro” tomo LXXVI, parte I. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1915). Couto Reis fornece números mais modestos e talvez mais confiáveis. Suas totalizações, em 1785, apontavam 296 engenhos e 9 engenhocas (COUTO REIS, Manoel Martins do. “Manuscritos de Manoel Martins do Couto Reis – 1785: Descrição geográfica, política e cronográfica do Distrito dos Campos Goitacazes”. Campos dos Goytacazes: Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima; Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 2011).
(Texto redigido por ocasião do lançamento de “Doceira campista: nova guia manual para se fazer todas as qualidades de doces e algumas iguarias”. Edição fac-similar de 1890”. Prefeitura e Câmara Municipal de Campos. Rio de Janeiro: Autografia, 2021).
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