Arthur Soffiati - Engenhos, açúcar e doces (I)
Arthur Soffiati 20/09/2021 22:26 - Atualizado em 20/09/2021 22:30
Antes dos humanos, os insetos fabricavam açúcar, extraindo-o de flores e produzindo mel. As plantas contêm açúcar em maior ou menor quantidade. Descobriu-se que uma gramínea contém um grau elevado de sacarose. De fato, a cana é um bambu de colmo cheio do qual pode ser obter grande volume de açúcar. Trata-se de uma planta de origem indiana. No início da história do açúcar, ele era um produto raro e caro. Tanto na Índia quanto na China e em outras partes da Ásia, ele já era conhecido e vendido.
O movimento das Cruzadas (1096-1270) introduziu o açúcar na Europa ocidental. O “sal doce”, como o chamavam, era comercializado pelos muçulmanos e cristãos venezianos na condição de especiaria monopolizada. Consta que Veneza, no século XII, adquiriu terras em torno de Tiro, na antiga Fenícia para produzir açúcar e exportar para a Europa. As ilhas do mar Mediterrâneo apresentavam bom solo e bom clima para o cultivo de cana. Engenhos foram construídos nelas. Em Chipre, desenvolveu-se a técnica de refinar o açúcar.
Os italianos tiveram forte participação na colonização das ilhas do Atlântico no século XV. O infante D. Henrique introduziu a cana-de-açúcar nas ilhas de Porto Santo, da Madeira e no arquipélago dos Açores. A Espanha cultivou a planta no arquipélago das Canárias. As terras dessas ilhas não eram amplas nem muito apropriadas para o cultivo por serem muito montanhosas. Mesmo assim, Portugal se tornou o maior produtor de açúcar da Europa. Com a conquista do caminho marítimo para o oceano Índico, Portugal aumentou seu domínio na importação de açúcar para a Europa. Por sua vez, a cana foi introduzida na América do Norte por Cristóvão Colombo, que levou mudas das Canárias para a ilha de São Domingos (atuais República Dominicana e Haiti).
A colonização do Brasil pelos portugueses está intimamente ligada à cana-de-açúcar. As ilhas do Mediterrâneo e do Atlântico foram os laboratórios experimentais para a colonização do Brasil. As terras da América do Sul, sobretudo as do litoral, eram ótimas para o cultivo da planta, principalmente os solos de massapê. O clima também era bastante favorável. Mas a produção em larga escala exigia trabalhadores. Portugal recorreu a uma prática já bastante conhecida e difundida no século XV: o trabalho escravo de africanos.
Os custos de produção eram baixíssimos e os ganhos eram extraordinários. As terras eram doadas na forma de sesmarias, que eram grandes extensões rurais. Os povos nativos ou eram incorporados com a catequese ou eram eliminados ou expulsos para o interior. A vasta Mata Atlântica, que cobria as férteis terras, eram removidas com o fogo principalmente. O tráfico de africanos era muito rendoso, assim como seu trabalho era quase gratuito. Desse modo, os engenhos se multiplicaram rapidamente na zona costeira do Brasil, que se tornou o maior produtor de açúcar do mundo. A produção bruta era feita em terras brasileiras, mas o refino era feito na Europa, principalmente na Holanda. É de se perguntar por que a cana não era exportada diretamente para a Europa a fim de agilizar o refino. A viagem entre Brasil e Europa durava meses. A cana chegaria estragada. A escravidão era praticada por europeus, mas não na Europa. Assim, o açúcar grosso era fabricado no Brasil, embalado em caixas de madeira e enviado para a Europa, onde seria refinado e vendido.
A doçaria portuguesa se tornou famosa graças ao açúcar. O mais antigo livro de culinária portuguesa, datado do século XV, refere-se ao açúcar derretido e ao açúcar em “pomto”. O derretido é a calda, e o em “pomto” é o derretido em ponto de calda. Este livro pertenceu à Infanta D. Maria, filha de D. Duarte, sobrinha de D. João III e neta de D. Manuel. Ela viveu no século XVI e morou em Parma ao casar-se com Alexandre Farnésio duque de Parma, Placêncio e Castro (ABBADE, Celina Márcia de Souza. “Um estudo lexical do primeiro manuscrito de culinária portuguesa medieval: o livro de cozinha da Infanta D. Maria. Salvador”: Quarteto, 2009).
“Um tratado da cozinha portuguesa do século XV” (Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 1994) contém várias receitas em que entra o açúcar. Uma delas: “tillegadas de leyte de dona Isabell de Vilhana: ... e as tigellas quantas se enchem destes ouos e farinha e se forem duas deitarão as dez de lleite e se forem menos ou mais perfarão tudo de leite/e deitarlheão hu a Ratell de acuquar pisado...”. A farinha e os ovos são também ingredientes que não podem faltar na doçaria portuguesa.
A doçaria árabe é também bastaste rica e influenciou a culinária portuguesa. Lembre-se que a Península Ibérica foi dominada pelos árabes durante setecentos anos. Aliás, a palavra açúcar origina-se no árabe as-sukkar. Um dos doces árabes adotados pela doçaria portuguesa foi o alfenim (MACHADO, José Pedro. “Vocabulário português de origem árabe”. Lisboa: Editorial Notícias, s/d). Ele foi levado para a ilha da Madeira e para os Açores, chegando ao Brasil. A receita, registrada na ilha Terceira, dos Açores, ensina: “Para meio quilo de açúcar, um quartilho e meio de água, meia colher de chá de manteiga e uma colher de sopa de vinagre, forte e bom, de vinho branco. Põe-se o açúcar, com o mais, ao lume num tacho a ferver até tomar ponto bem alto, o que se conhece tirando uma gota com uma colher para dentro duma chávena de água fria. Se ao cair faz um pequeno ruído no fundo da chávena e se tira com a mão estando duro atingiu o ponto preciso. Tem-se ao lado um tacho de cobre, dos que servem para fazer doce de fruta, untado de manteiga, e deita-se-lhe dentro a massa sem mexer e deixa-se escorrer bem. Este tacho está dentro de um alguidar com água fria, para o conteúdo ir arrefecendo e com a ponta de uma faca vão-se virando os bordos da massa para o centro, isto só e.a quanto se não pode pegar na mas, a com as mãos; logo que se pode vai-se puxando com elas a massa a fazer uma meada. Quando está branca e um pouco dura dá-se-lhe a forma que se quer — pombas, flores, rosquilhas, etc. É necessário ter cuidado em não mexer o açúcar com colher em quanto toma ponto e, ao virar a massa com a faca, nunca tocar com esta no meio”.
A culinária portuguesa se disseminou em todas as suas colônias da América, da África e da Ásia, mesclando-se com as diversas culinárias locais. Macau ficou sob domínio de Portugal entre 1557 e 1999. Hoje, voltou a integrar a China como Região Autônoma. Sua culinária tornou-se Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade desde 2012. Sendo a única cidade da China em que os jogos de azar são legalizados, o movimento turístico é intenso. A cozinha é cosmopolita, mas a influência portuguesa ainda se faz presente em doces como a bebinca de leite ou o bolo menino, mas mesclada com a influência chinesa macaense. A serradura, por exemplo, é um doce típico português modificado por influências chinesas e recriado pelo japonês Norihito Muranaka, agora com o nome de matcha serradura.
Goa, a capital do império português no oceano Índico, foi reincorporada à Índia em 1961. A influência lusa, porém, continuou em vários campos da cultura, embora a língua portuguesa, com as modificações que sofreu ao se expandir pelo mundo, esteja se extinguindo aos poucos. A culinária goesa se estende a Diu e Damão, também na Índia e dominações portuguesas até 1961. Como Goa foi um um entreposto mundial, este cosmopolitismo refletiu-se na culinária, com a inclusão de carnes, por exemplo, que não integram a cultura indiana por razões religiosas. Há outras inclusões, como o quiabo, originário da África, o repolho, o feijão-verde, a couve-flor, o espinafre e a beringela. O leite de coco é bastante usado nos cozidos. Os temperos provêm das famosas especiarias. O sarapatel é um prato indiano bastante conhecido no Brasil.
A doçaria é conhecida pelo bolo rolão, bebinca, doce de grão, fatias de coco, doce de tâmaras; doce de papaia, batatada, jagrada; aranhas de coco, filhoses, odés, mandarés e bolos diversos. O açúcar é ingrediente bastante conhecido, não apenas pela origem indiana da cana-de-açúcar, como também por uma espécie de segunda onda dessa especiaria reforçada pela doçaria lusa.
No Brasil, a doçaria portuguesa não só se disseminou por todo o território da maior colônia de Portugal como também recebeu forte influência de culturas africanas e, em pequena escala dos povos nativos. Cabe lembrar que os povos indígenas só conheciam o mel como adoçante. Havia e ainda há um grande número de espécies nativas de abelhas no Brasil que produzem mel. Os doces não integravam a culinária desses povos. No entanto, a paçoca e a pamonha têm origem tupi e foram modificadas pelos portugueses, como registra Antônio Geraldo da Cunha (“Dicionário histórico das palavras portuguesas de origem tupi”. São Paulo: Melhoramentos; Brasília: UnB, 1999).
Texto redigido por ocasião do lançamento de “Doceira Campista: Nova Guia Manual para se fazer todas as qualidades de doces e algumas iguarias — Edição Fac-similar de 1890”. Prefeitura e Câmara Municipal de Campos. Rio de Janeiro, Autografia, 2021

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