Arthur Soffiati - Alô, alô, mundo, quem fala é o ocidente
Arthur Soffiati - Atualizado em 29/09/2021 18:20
Em livro recente, o historiador francês François Dosse analisa a dimensão dos intelectuais franceses em relação ao mundo da Segunda Guerra Mundial até 1989. Seu título é “A saga dos intelectuais franceses”. Sobre Jean-Paul Sartre, Dosse escreve se tratar do intelectual de perfil perfeito, porque ele não falava apenas para seu país ou para a Europa. Ele falava para o mundo. Os que o sucederam são menos ambiciosos e com projetos intelectuais mais restritos.
Dosse delimita seu tema e os limites temporais de sua abordagem. O que ele aponta para Sartre vale para os intelectuais da civilização ocidental cristã. Desde o século XV, o ocidente se dirige ao mundo para mostrar a sua superioridade. João Rocha Pinto, historiador português muito mais modesto que Sartre, mostra, num texto, a dificuldade que o ocidente tinha de compreender os outros, o diferente. Segundo suas palavras, “esta dificuldade em compreender ou outros e as outras culturas deve muito à ideia da fé judaico-cristã, que partia do pressuposto da existência de um único Deus criador e da consequente unidade do gênero humano [...] ao cristão, que alcançava o verdadeiro conhecimento de Deus, estava reservada a mais nobre das missões: trazer os pagãos e os infiéis ao bom caminho, ao encontro do Deus verdadeiro... por bem ou por mal!”
De fato, o monoteísmo e a convicção de que só existe um Deus verdadeiro ajuda a dominação, mas não basta. Vejamos as outras denominação cristãs do século XV. Os cristãos ortodoxos, os cristãos do Oriente Médio, do Egito, da Etiópia, da Índia e até os cristãos nestorianos, considerados heréticos por Roma, compartilhavam, em princípio, a mesma intolerância do catolicismo romano. Os judaístas fundaram essa intolerância, mas foram espalhados pela diáspora provocada pelo Império Romano. Os que viviam na Europa estavam subordinados aos cristãos. O islamismo também deriva do judaísmo, cultivando a mesma crença na superioridade de seu Deus sobre os outros, todos falsos. Em nome dessa intolerância, os muçulmanos pretenderam dominar o ocidente, mas só conseguiram se estabelecer na península Ibérica.
Para o cristão católico romano, foi necessário mais que a intolerância monoteísta. Ela não bastaria para o domínio do mundo pelas ideais. Aqui, já enveredo por um caminho perigoso aos historiadores: falar na condicional. Mas, pedindo vênia ao leitor por tomar essa liberdade, logo em seguida, menciono fatores presentes na expansão ocidental. Um deles foram as armas de fogo, ainda desconhecidas no mundo. A intolerância e a falta de compreensão relativamente ao outro com uma arma de fogo na mão ficam mais poderosas. Que sirvam de ilustração a conquista do México pela Espanha e a conquista de pontos nevrálgicos na China pela Inglaterra. Junte-se o terceiro fator, este de suma importância para impulsionar uma denominação cristã em direção à conquista do mundo — violenta ou não: a economia de mercado. Os ocidentais não conquistavam outros povos para catequizá-los e torná-los cristãos. A dominação visava suas riquezas. A catequese vinha como consequência. Portanto, não foi o desejo de converter o mundo ao cristianismo católico romano que motivou a expansão, mas o desejo de engordar a economia de mercado.
A partir do movimento renascentista, a Igreja Católica Romana começou a sofrer golpes de religiosos separatistas, como os protestantes, e de pensadores laicos. Destes últimos, era de se esperar a crítica da intolerância. Mas ela foi reafirmada por eles. René Descartes, no século XVII, concebe uma filosofia nitidamente ocidental que se dirige à Europa e ao mundo. A razão defendida por ele é fundada na matemática. O penso logo existo inclui apenas os pensadores fundamentados na matemática. A maioria dos homens, as mulheres em geral e os outros povos estão excluídos da condição de ser existente. Sejamos todos pensadores, matemáticos e ocidentais.
John Locke escreve cartas sobre a tolerância não para defender uma postura compreensiva com relação a outros povos. Ele pleiteia a tolerância entre os cristãos da Europa, que deveriam transformar sua fé em questão de foro íntimo e cuidar de assuntos laicos. Ele fala para europeus e para o mundo. O mesmo pode-se afirmar dos iluministas e de Kant. De Marx e Engels, poderíamos esperar compreensão em relação ao diferente. Mas não a encontramos. A escravização não é condenada com veemência por eles, já que promove a ocidentalização de africanos. A prova mais cabal da intolerância de Marx com relação ao diferente foi seu apoio incondicional ao massacre de indianos pela Inglaterra na rebelião dos Sipaios.
Não há, da minha parte, qualquer condenação radical à intolerância ocidental. Meu intento é refletir apenas sobre o poder que a economia de mercado conferiu a essa postura intolerante. Outros povos também tinham a intolerância como elemento de sua cultura e não conseguiram globalizar o mundo como o ocidente. Voltamos ao assunto.

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