A Semana de Arte Moderna, realizada em 1922, em São Paulo, entre 13 e 18 de fevereiro, no Teatro Municipal de São Paulo, representa um divisor de águas na cultura brasileira, haja vista que gerou profundas transformações. Todavia, mister ressaltar que a Semana não foi o início das mudanças, pois, na realidade, fora o ponto culminante de um processo que tivera seu começo na década anterior, quando ocorreram publicações de artigos polêmicos na imprensa, publicações de obras, exposições e conferências. Válido arrolar alguns dos principais acontecimentos que precederam à Semana:
1) em 1911, Oswald de Andrade e Emílio de Menezes fundam a revista de artes “O Pirralho”; 2) em 1912, Oswald de Andrade retorna da Europa, trazendo a novidade do verso livre, influência da poesia de Paul Fort; 3) em 1914, a pintora Anita Malfatti retorna da Europa, onde desde 1912 estudava pintura expressionista, e faz uma exposição na Casa Mappin; 4) em 1917, diversos escritores, futuros modernistas, publicam obras com algumas inovações de linguagem. Entre eles, Mário de Andrade, que, ainda utilizando o pseudônimo de Mário Sobral, lança “Há uma gota de sangue em cada poema”. Manuel Bandeira publica “A cinza das horas”; Menotti Del Picchia lança “Juca Tatu”. Nesse ano ainda, Anita Malfatti regressa dos Estados Unidos, onde realizara experiências de nu cubista. Influenciada por amigos, entre eles o pintor Di Cavalcanti, a pintora realiza uma exposição de suas obras. A referida exposição provocou uma violenta reação por parte de Monteiro Lobato, crítico do jornal “O Estado de S. Paulo”. Por sua vez, Oswald de Andrade defendeu a pintora no Jornal do Comércio, nascendo assim o confronto de ideias. Abaixo, fragmentos do artigo denominado “Paranoia ou Mistificação?”, de autoria de Monteiro Lobato, no qual tece críticas ferrenhas à exposição de Anita Malfatti:
“Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que veem normalmente as coisas e em consequência disso fazem arte pura, guardando os eternos ritmos da vida, e adotados para a concretização das emoções estéticas, os processos clássicos dos grandes mestres. [...] A outra espécie é formada pelos que veem anormalmente a natureza e interpretam-na à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. São produtos do cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência: são frutos de fins de estação, bichados ao nascedouro [...] Embora eles se deem como novos, precursores de uma arte a vir, nada é mais velho do que a arte anormal ou teratológica: nasceu com a paranoia e com a mistificação.[...] Essas considerações são provocadas pela exposição da Sra. Malfatti onde se notam acentuadíssimas tendências para uma atitude estética forçada no sentido das extravagâncias de Picasso e companhia [...]”.
Durante toda a semana (13 a 18 de fevereiro), o saguão do teatro ficou abertO ao público, pois acontecia a exposição de artes plásticas com obras de Anita Malfatti, Vicente do Rego Monteiro, Di Cavalcanti, entre outros.
Nas noites dos dias 13, 15 e 17 de fevereiro, realizaram-se saraus com apresentação de conferências, leituras de poemas, dança e música. No dia 13, Graça Aranha abriu os trabalhos da noite com a conferência intitulada “A Emoção estética na arte moderna”, acompanhada da música de Ernani Braga e das poesias de Ronald de Carvalho e Guilherme de Almeida. A conferência de Graça Aranha não causou grandes celeumas, ao contrário da música de Ernani Braga, que, ao satirizar Chopin, fez com que a pianista Guiomar Novaes protestasse publicamente contra os organizadores da Semana.
A noite do dia 15 foi a mais agitada. Menotti Del Picchia abriu o espetáculo da noite com a palestra “Arte Moderna”, por meio da qual reivindicava liberdade e renovação, provocando apartes e muitas vaias. Ronald de Carvalho lê “Os sapos”, de Manuel Bandeira, numa crítica aberta ao modelo parnasiano, o que provocou a reação do público, que fez coro, ironizando o refrão “foi! não foi! foi !...”. Manuel Bandeira não pôde ler o próprio texto, pois estava com problemas de saúde. No intervalo, Mário de Andrade leu, nas escadarias do teatro, trechos de “A escrava que não é Isaura.”
Na noite do dia 17, houve a apresentação de músicas de Villa-Lobos. O público já não era tão quantitativo e comportava-se de forma mais tranquila, mudando de postura quando o maestro Villa-Lobos entra em cena de casaca e chinelos. Por entender a atitude do maestro como futurista, a plateia vaiou muito.
A Semana de Arte Moderna foi de muita importância histórica, uma vez que representou a confluência das várias tendências de renovação que vinham acontecendo na arte e na cultura brasileira e por ter aproximado artistas de diferentes campos: escritores, poetas, pintores, escultores, arquitetos, músicos, bailarinos etc.
Em uma conferência ocorrida em 1942, na qual se comemorava os vinte anos da Semana de Arte Moderna, Mário de Andrade declarou: “O Modernismo, no Brasil, foi uma ruptura, foi um abandono de princípios e de técnicas consequentes, foi uma revolta contra o que era a Inteligência nacional”.
Os poemas “Poética” e “Ode ao Burguês”, respectivamente, de autoria de Manuel Bandeira e Mário de Andrade foram verdadeiros “hinos” modernistas. “Poética” não apresenta versos metrificados, na realidade, Bandeira faz o uso de versos propositadamente longos. Em “Ode ao burguês”, Mário de Andrade nos dá a ideia da dimensão da crítica social que marca a arte moderna. A seguir, alguns versos dos referidos poemas.
Poética: “Estou farto do lirismo comedido/ Do lirismo bem comportado/ Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e [manifestações de apreço ao Sr. diretor./Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo [de um vocábulo./Abaixo os puristas/Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais/Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção/Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis/”.
Ode ao Burguês: “Eu insulto o burguês! O burguês-níquel/ o burguês burguês!/ A digestão bem-feita de São Paulo!/ O homem-curva! O homem-nádegas!/ O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,/ é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!”
No próximo ano, comemoraremos o centenário da Semana da Arte Moderna.
*Christiano Fagundes é vice-presidente da Academia Campista de Letras (ACL) e coordenador do curso de Letras do Centro Universitário Fluminense (Uniflu)