Ruy Castro se vale de um expediente que pode servir para cronistas e jornalistas. Não para historiadores. O uso da condicional não serve porque não se pode construir uma história hipotética. Na página 166 do seu livro “Metrópole à beira-mar” (São Paulo: Companhia das Letras, 2019), ele escreve: “É bem conhecida a história de como, a partir de Anita, os rapazes se conheceram, descobriram suas afinidades e formaram um grupo que, em fevereiro de 1922, resultaria na Semana de Arte Moderna. Mas, da maneira como contam, seria um caso de geração espontânea. O processo não foi tão simples e talvez não tivesse acontecido sem a participação de Di Cavalcanti”.
Sabemos do importante papel desempenhado por Di Cavalcanti, mas afirmar que, talvez, não houvesse o evento de 1922 se não fosse ele, é supor uma história alternativa. É também atribuir a Semana a uma personalidade iluminada que teria articulado tudo.
À página 103, vem a afirmação que aparece em outros pontos do livro: Mário Pederneiras foi o precursor do verso livre e primeiro poeta no Brasil a escrever poesia diretamente à máquina. Quem procurar Pederneiras nas enciclopédias, certamente encontrará seu nome. Mesmo no Google, aparece a sua biografia. Ele nasceu no Rio de Janeiro em 1867. A literatura francesa teve forte influência em sua formação. Ele foi um poeta simbolista que deveu muito a Cruz e Sousa, Antônio Nobre e Cesário Verde. Escrevia fácil sobre temas do cotidiano. Foi diretor das revistas “Rio Revista”, “Galáxia”, “Mercúrio” e “Fon-Fon”. Não se discute seu perfil moderno, que, a essa altura, tem seus marcos meio vagos.
Entre seus livros, figuram os títulos “Agonias”, “Rondas noturnas”, “Histórias do meu casal” e ao “Leu do sonho e à mercê da vida”. Deixou inédito “Outono”, que foi publicado postumamente em 1921. Tomo alguns exemplos desse livro raro no sentido de ser difícil de encontrar (PEDERNEIRAS, Mário. “Outono”. Rio de Janeiro: Livraria Editora Leite Ribeiro, 1921). Do poema “Elogio da cidade” (do Rio de Janeiro):
É mais azul teu Céu, tuas luzes mais jaldes,
São outros mais jocundos,
Os aspectos modernos que seduzem,
Tudo o que, melhorada,
A tua vida nova abrange,
Na sua agitação intensa e diurna;
E é mais limpa e cuidada
A natureza de teus arrabaldes;
Seja embora mais e mais soturna,
A miséria dos bairros vagabundos,
Onde a viola plange
E as lâminas reluzem.
Há rimas distanciadas que não são percebidas numa leitura rápida: jaldes/arrabaldes; jocundos/vagabundos; seduzem/reluzem; melhorada/cuidada; abrange/plange; diurna/soturrna. A métrica é variável. Em “Passeio público”, ele escreve:
Jardim de paz, de quietação, de sono,
Sem florações pujantes e vermelhas
Sem horizontes de calor e brasas,
Sem o rude rumor da cidade grotesca,
Agitada, excitante...
Velho jardim de Outono,
Trecho feliz de província distante
E de impressões serenas,
Onde se ouvem apenas
O adejo de asas,
O zumbir de abelhas
E o rumor de água fresca.
Rimas também estão presentes aqui. Mas parece não haver dúvida de que estamos diante de um poeta simbolista que ousa mais que seus colegas. Perto da métrica e das rimas rigorosas de Alphonsus de Guimaraens, Augusto dos Anjos, Gylka Machado e de outros, poder-se-ia dizer que Mário Pederneiras não representa bem o simbolismo. Por sua métrica e rima, ele não é mais um simbolista. Mas também não é um modernista. O uso de verso livre não é sinônimo de modernismo.
Em “Há uma gota de sangue em cada poema”, pode-se dizer que Mário de Andrade ainda não se libertou do simbolismo nem conseguiu ser modernista. A diferença dos livros dos dois Mários não é apenas de três anos (1914-1917). Com “Outono”, Pederneiras encerra sua carreira, enquanto Mário de Andrade começa a sua. A responsabilidade não é de Pederneiras, mas de Ruy Castro em apenas mencionar que o poeta carioca foi o primeiro a usar o verso livre, tirando esse mérito de “Pauliceia desvairada”, de Mário de Andrade, em 1922.
Antes de publicar “Pauliceia desvairada”, Mário de Andrade efetuou uma varredura em revistas e livros de poetas europeus que estavam rompendo com a tradição clássica de fazer poesia. Leu também muitos teóricos. Essas leituras todas fundamentaram “A escrava que não é Isaura”, livro publicado de forma independente em 1924 e depois reunido em “Obra imatura”, primeiro volume das suas obras completas. O clima é outro. Passou-se de um mundo rural para um mundo urbano. A poesia se inspira no movimento das cidades e não, como em Mário Pederneiras, na cidade tranquila. É o ritmo frenético da vida das ruas que inspira a poesia. O simultaneísmo substitui o sentimento ordenado do parnasianismo e do simbolismo. Não há mais a preocupação com a forma, com a métrica e com a rima, embora elas possam ocorrer de forma não planejada. Tomo como exemplo o poema “Tu”, de “Pauliceia desvairada” (São Paulo: Casa Mayença, 1922).
Morrente chama esgalga,
mais morta inda no espírito!
Espírito de fidalga,
que vive dum bocejo entre dois galanteios
e de longe em longe uma chávena de treva bem forte!
Mulher mais longa
que os pasmos alucinados
das torres de São Bento!
Mulher feita de asfalto e lamas de várzea,
toda insultos nos olhos,
toda convites nessa boca louca de rubores!
Costureirinha de São Paulo,
Ítalo-franco-luso-brasílico-saxônica,
gosto dos teus ardores crepusculares,
crepusculares e por isso mais ardentes,
bandeirantemente!
O poema traduz lirismo. As emoções não são mais contidas em nome da forma, métrica e rima. Há estrofes. Há ritmo. Há rimas eventuais. Mas a liberdade de expressar as emoções não pode ser aprisionada pela técnica fria do parnasianismo.
Com relação a “Pauliceia desvairada”, cabe ainda uma observação de Silviano Santiago: “Silenciosamente, o poeta subscreve o verso ‘Flor amorosa de três raças tristes’, do parnasiano Olavo Bilac, e, de modo radical, questiona o adjetivo — triste — que, nas interpretações do Brasil de caráter elitista, continuará a qualificá-lo desfavoravelmente. ‘Pauliceia Desvairada’ é batalhador e aposta na vitória da alegria arlequinal sobre a tristeza amorosa. Os losangos coloridos da vestimenta energizam positivamente a flor amorosa de três raças e abrigam a variedade infinita de etnias, presente nas recentes levas de imigrantes camponeses.” (SANTIAGO, Silviano. Friozinho arrebitado. “Folha de São Paulo”, 30/05/2021).
Enquanto os parnasianos e seus admiradores continuavam a ver o povo brasileiro composto por brancos portugueses, negros africanos e índios americanos como povos tristes, Mário de Andrade vê agora uma população formada por imigrantes de diversas origens e nada tristes. Pelo menos em São Paulo. Num artigo de Mário, perdido no jornal “O Estado do Pará”, de 22 de julho de 1928, e quase desconhecido (talvez do próprio Silviano), o autor de “Pauliceia desvariada” confirma a percepção do crítico literário: “Porém o brasileiro já criou uma coisa de perfeição e variedade estupenda: a nossa música. Não digam mais que ela é a ‘Flor amorosa de três raças tristes’ não! Isso é falso. Que seja flor concordo e amorosa também. Mas que três raças tristes essas! Portugal não é triste nem o foi, corajudo como era. A cantiga dele que carece não confundir com o fado, invenção da estudantada melosa de Coimbra, a cantiga dele é sã e alegre como poucas. Conheço bem ela e posso falar assim. Dos ameríndios não refletimos quase nada ou nada mesmo, em música [...] os índios só compreendem o canto socializado [...] A influência espanhola garanto que foi enorme e decisiva aqui. A mazurca, a polca, o shotis eslavas e a valsa germânica tiveram influência muito poderosa como forma e até como melódica. Talvez tão grande como a do africano.” (Sem título. “Revista Brasileira de Folclore” nº 12. Rio de Janeiro: Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, maio/agosto de 1965).
Crê-se ter dissipado o simplismo de Ruy Castro em confundir verso livre com Modernismo, ao mesmo tempo mostrando que Mário de Andrade, com suas pesquisas, jamais endossaria a afirmação tão cara aos conservadores sobre a tristeza das três “raças” formadoras do povo brasileiro. Elas não foram três nem foram tristes. Mário combate o parnasianismo na forma e no conteúdo.