Folha Letras - Direito à cidade com foco em gênero, cidadania e urbanismo
Daniela Bogado Bastos de Oliveira 09/08/2021 14:38 - Atualizado em 09/08/2021 17:07
Rua deserta é uma das barreiras simbólicas para mulheres
Rua deserta é uma das barreiras simbólicas para mulheres / Foto: Divulgação
Entendo que o direito à cidade, na perspectiva da diversidade, requer correlacionar gênero com cidadania, direitos humanos, arquitetura e urbanismo, de modo a perceber como tais variáveis podem moldar o ângulo de visão de se enxergar e vivenciar a cidade.
Ao defender, promover e articular os ideais dos direitos humanos nos planos ético e político, enfatizamos a importância dos direitos das mulheres, somando forças, assim, na reivindicação do direito à cidade – renovada, transformada – como um direito de todos, inclusive através de empoderamento e criação de novos espaços comuns de socialização e ação política.
Contudo, é preciso entender como a cidade pode ser hostil e gerar insegurança para as mulheres para, paralelamente, pensar uma arquitetura, um paisagismo e urbanismo que, considerando a justiça socioambiental e as funções urbanísticas de moradia, trabalho, lazer e mobilidade, se baseiem em diretrizes para minimizar as desigualdades sociais e formas de opressão, se preocupando com o bem estar da população e na vital apropriação dos Espaços Livres Públicos (ELPs). Para isso, necessário estar atento a questões sociourbanísticas e de desigualdade de gênero, analisando formas de superar premissas universalistas e heteronormativas.
Por isso, a necessidade de haver políticas públicas urbanas inclusivas, mais justas, solidárias, acessíveis, igualitárias e democráticas, relacionadas a demandas locais e específicas das cidadãs, enquanto sujeitos de direitos, que demonstrem a pluralidade no espaço urbano, otimizando os ELPs.
Portanto, é crucial tratarmos de temas atuais que repercutem no planejamento e na gestão urbana e interferem diretamente as interrelações socioespaciais, como violências contra a mulher, homofobia, racismo e acessibilidade, que afetam as pessoas que têm suas especificidades e toda uma subjetividade no exercício do direito à cidade.
No contexto da cidade para pessoas, devemos priorizar a escala humana, havendo a compreensão de que a apropriação, ou não, dos ELPs depende: da identificação e do sentimento de pertencimento e de afetividade com estes lugares; da oferta de equipamentos e serviços urbanos de qualidade; da efetiva sensação de segurança; da democratização do acesso aos lugares; da valorização e do cuidado com a paisagem urbana, de gestão participativa, bem como da superação da desigualdade e da discriminação socioespacial, para que haja uma digna vida pública e para que o planejamento urbano considere a diversidade, como forma de dinamizar o cotidiano das pessoas, focando na dimensão humana e no Sistema de Espaços Livres.
Como o fluxo das pessoas é dinâmico, esta dinamicidade, que se reflete em Campos dos Goytacazes, justifica observar o que Lefebvre aponta ser fundamental na dinâmica da cidade: “os grupos, as etnias, as idades, os sexos, as atividades, os trabalhos, as funções e os conhecimentos”. Tanto é assim, que é possível notar como os recortes de gênero, étnico, religioso e socioeconômico afetam diretamente as interrelações socioespaciais, repercutindo na circulação, nas atividades de recreação e no imaginário, o que reforça o simbólico e a subjetividade do exercício do direito à cidade.
Daí, é relevante observar situações concretas, considerando os trajetos de pessoas, suas memórias, usos e práticas cotidianas, bem como analisando, de forma interdisciplinar, as contradições urbanas referentes a aspectos sócio-econômicos, de gênero, étnico-racial, entre outras características de quem vivencia a cidade, buscando compreender tanto como a morfologia urbana e fatores como horário, iluminação, sensação de (in)segurança e setorização do espaço podem influenciar no (des)uso de espaços da cidade, em razão de vulnerabilidades sociais, quanto o exercício da cidadania e a liberdade de manifestação.
A vivência da mulher no espaço urbano mostra-se mais complexa e abrangente, seja pelo uso do espaço no ir e vir entre casa, creche/escola, compras, trabalho, estudo/faculdade, lazer, atividades físicas, igreja, seja pelas barreiras simbólicas nesses trajetos, oriundas da maior vulnerabilidade diante da violência urbana e do sexismo.
A propósito, neste momento de pandemia, podemos refletir, em conformidade com o Dossiê Nacional sobre o Covid-19, do Observatório das Metrópoles, como este contexto atual de crises sanitária, ambiental, urbana, política e econômica acirra a situação de vulnerabilidades sociais, nos levando à reflexão de heterogeneidade e da diversidade, bem como o quanto que as mulheres, p. ex., estão mais expostas ao contágio do Covid 19 e sobrecarregadas, por terem papel de cuidadoras e por serem multitarefas.
Com relação às barreiras simbólicas, podemos exemplificar as seguintes: a rua ser ou estar deserta; o local estar aglomerado demais; o horário muito cedo ou muito tarde; a escuridão; a calçada estar tomada por muitos homens; assobios e piadas de cunho sexual; terrenos baldios; terrenos com obras etc. Ressalta-se que geralmente as barreiras físicas como muros altos e compridos, fachadas cegas, quadras longas reforçam as barreiras simbólicas e a exclusão social. Além disso, há ainda frases de cunho moralista que culpabilizam a vítima mulher e que demonstram a dominação simbólica com a incorporação do ponto de vista do opressor.
As mulheres entrevistadas, em Campos dos Goytacazes, na pesquisa que coordenei e desenvolvi, no período de 2016 a 2019, sobre “A Diversidade na Cidade: Urbanismo, Gênero e Cidadania”, ao serem indagadas sobre a qual violência se sentem mais expostas no cotidiano da cidade, indicaram o estupro, evidenciando o medo de violência sexual relacionada à vulnerabilidade e especificidade de ser mulher. Já o furto foi a violência de cunho patrimonial apontada pela maioria. Quanto ao preconceito, as principais discriminações apontadas foram referentes ao racismo e à homofobia. No que tange ao desuso dos ELPs para lazer, o que apareceu como maior justificativa foram a insegurança e a falta de atratividade relacionadas às praças, bem como a falta de acessibilidade.
Verificou-se, ainda, na pesquisa, que mulheres que possuem maior poder aquisitivo utilizam transportes particulares como o carro, moto, uber/táxi ao invés de andar, mesmo para lugares muito próximos. Para as de renda mais baixa, a utilização do transporte público (ônibus e van) gera transtornos/inconveniências relacionados a horários, tempo de espera no ponto, escassez especialmente nos finais de semana, (super)lotação, linhas/rotas mais longas e assédio. Entretanto, um avanço na política de mobilidade urbana, p. ex, foi a Lei Municipal nº 8831/18, dispondo sobre critérios para desembarque de mulheres, fora da parada de ônibus, em período noturno. Quanto ao uso da bicicleta, há relatos sobre insegurança, insatisfação com o percurso insuficiente das ciclovias ou ciclofaixas, e também sobre questões climáticas e de conforto ambiental.
Neste sentido, Rossana Tavares, em sua tese de doutorado referente às desigualdades de gênero na cidade, fala do urbanismo de possibilidades, como o que interfere no espaço urbano a partir das questões de gênero, partindo do entendimento de que as práticas sociais de gênero no espaço urbano desvendam processos de resistência por revelar uma correlação de forças sociais, demonstrando uma tensão entre os interesses práticos e estratégicos das mulheres na cidade. Percebe-se que as mulheres são sujeitos ativos que diariamente tentam reconceber a cidade, resistindo, desafiando e permeando as fronteiras de gênero. Portanto, num contexto de interseccionalidade em que coexistem múltiplas maneiras de opressão que influenciam corpos, identidades e lugares, não unicamente dados referentes à violência contra a mulher no espaço urbano evidenciam a importância de políticas públicas e ações efetivas contra as desigualdades de gênero, mas também a própria subjetividade oriunda das experiências das mulheres, bem como de grupos minoritários no vivenciar a cidade. Afinal, para o urbanismo estar comprometido com a construção de cidades mais justas, deverá estar atento não apenas à política de redistribuição, mas ao reconhecimento das diferenças.
Destaca-se, ainda, que Montaner e Zaida Muxí ponderam que a condição pós-moderna requer um novo urbanismo, sinalizando “para uma arquitetura e um urbanismo da complexidade e da diversidade, pensados para reforçar os laços dentro da comunidade, com projetos que favorecem a inter-relação, potencializam a igualdade e a justiça, baseiam-se na participação e na intervenção dos usuários e que são mais sustentáveis por tentarem levar em consideração as condições do lugar, a cultura e os imaginários, as necessidades e os movimentos de seus habitantes”.
Assim sendo, considerando que a cidade não se resume a uma experiência territorial, material, física, estando na cabeça, sendo mental, interessante sentir, pensar, observar, falar e registrar nossas vivências na cidade, buscando um olhar mais atento para as questões das mulheres e da plenitude da cidadania. Afinal, “a experiência urbana se apresenta sob a forma de uma infinidade de trajetórias”, afirma Olivier Mongin, o que precisa ser valorizado.
Reforça-se, então, que um planejamento urbano que compreende o espaço na perspectiva de gênero preocupa-se com a dimensão humana e com a qualidade de vida das pessoas que habitam a cidade, tornando a cidade mais agradável, ambientalmente e psicologicamente, para todos, combatendo formas de preconceito e discriminação, para efetivar direitos.
As diretrizes do Estatuto da Cidade e do novo Plano Diretor de Campos dos Goytacazes orientam para o cumprimento da função social da cidade através da formulação da política urbana participativamente, com justa distribuição dos benefícios do processo de urbanização, o que requer levar em conta as especificidades dos direitos das minorias e a equidade de gênero, para tornar a cidade mais viva, segura, saudável, igualitária, solidária, plural e acessível para todas as pessoas, concretizando o direito à cidade.
Daniela Bogado Bastos de Oliveira é doutora em sociologia política (Uenf), professora de Direito do IFF e Pesquisadora do Appa/IFF.

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