O compositor Ivan Lins, em uma entrevista concedida à TV Bandeirante, em 1987, afirma que a única música, no mundo, que possui letra poética é a brasileira. A maioria das letras, em outros idiomas, é descritiva, quase não usa metáforas e, quase sempre, conta alguma estória por frases soltas. Outra questão importante em relação às letras da Bossa Nova é a integração entre letra e música em alguns dos exemplares do movimento. Augusto de Campos (1968), em uma série de artigos próprios e de músicos emblemáticos como Júlio Medaglia e Gilberto Mendes, reunidos em seu livro “Balanço da Bossa: Antologia crítica da moderna música popular brasileira”, que foram escritos em suplementos literários de jornais paulistas, com a intenção de analisar a Bossa Nova e o tropicalismo, ressalta o comportamento de vanguarda dos criadores do movimento, em particular o trabalho de Tom Jobim e João Gilberto. A forma contida de cantar do João, mexendo com as acentuações métricas e quase que falando a letra das músicas, muito diferente da forma como se conhecia a interpretação naquela época, levou esses autores a comparar a Bossa Nova com a arte de ponta de Oscar Niemeyer e dos autores da poesia concreta, também criada e desenvolvida nos anos 50. Vinha da questão estética, tanto da nova arquitetura quanto da poesia, além do grande comprometimento da Bossa Nova com a ruptura do formato da música popular brasileira dos anos anteriores.
Os poetas concretos também romperam com antigas tradições. Desta forma, a Bossa Nova, em seus primeiros passos, representada por músicas como “Desafinado” (1958) e “Samba de uma nota só” (1960), compostas por Tom Jobim e Newton Mendonça, inaugura, na MPB, um tipo de composição em que letra e música, ao mesmo tempo em que se comentam mutuamente, discutem as novidades musicais. A vanguarda aplicada da Bossa Nova encontra-se, sobretudo, na música “Desafinado”: no exato momento em que se pronuncia a sílaba tônica da palavra “desafino”, ocorre, no plano da música, uma nota inesperada, que representa uma transgressão aos padrões harmônicos e melódicos da música popular convencional. Dessa forma, uma questão estética é colocada sobre um pano de fundo sentimental. No “Samba de uma nota só”, a letra narra exatamente o que está acontecendo na música: está sendo tocada em apenas uma nota, em sua primeira parte. Na segunda parte, a letra justifica essa mesma arrumação melódica através de uma opinião exclusiva do autor a respeito do seu novo comportamento.
Até 1962, a despeito da falta de preocupação com a qualidade estética, em relação ao show do Carnegie Hall e às apresentações domésticas da Bossa, inspiradas na descontração das músicas, o movimento exaltava despreocupações políticas e sociais, contemporâneas, vividas em um governo desenvolvimentista (Juscelino Kubitscheck – 1956/1961), cujo lema era desenvolver o país 50 anos em apenas cinco de mandato, que viria a mergulhar o Brasil em sérias dívidas com o capital internacional e empresas multinacionais. Tudo isso levou a um resultado econômico e político sombrio, com inflação descontrolada e severos problemas na balança de pagamentos. A partir da renúncia do presidente Jânio Quadros, em 25 de agosto de 1961, vemos um Brasil endividado, mergulhado numa crise sem precedentes e com preocupantes dificuldades para empossar o vice-presidente eleito João Goulart. Nessa parte da história política do país, a Bossa Nova muda de direção e imprime às suas letras um conteúdo de luta e protesto para com as forças de direita que, dois anos depois, iriam assumir o governo brasileiro.
Os conhecidos afro-sambas compostos por Vinícius de Moraes e Baden Powell abordavam, através de suas letras e músicas mais eloquentes, temas nacionalistas que envolviam a ideologia de esquerda da juventude universitária. A Bossa Nova, segundo percepções críticas, até ali, havia desenvolvido uma forma moderna e um conteúdo carente de inserção política e social. As novas composições, agora chamadas de samba, até porque já envolviam muito mais os compositores do samba “autêntico”, vindo dos morros e comunidades pobres do Rio de Janeiro, já não falavam mais de coisas simples como cantinhos amorosos, violões, finais de tarde, amores, sorrisos e flores. Agora, a tônica das letras endurecia com o regime e descrevia situações comportamentais relacionadas ao nacionalismo e à cultura brasileira. “Rio“, “Garota de Ipanema”, “Meditação”, “Vivo sonhando” e “Caminhos Cruzados” gora se chamavam “Berimbau”, “Canto de Ossanha” e “Influência do Jazz”.
Os compositores, numa época em que a repressão ao comunismo se mostrava, ao mesmo tempo com várias caras e com cara nenhuma, evitavam ir diretamente ao assunto, assumindo, em suas letras, conteúdos subliminares, ao falarem de temas que a partir daqueles dias se tornariam proibidos. Muitos autores teatrais, por exemplo, escreviam extensos textos, formatados em assuntos comuns e entremeados de conteúdos políticos, para que a censura, estabelecida pelo regime militar, se confundisse ou se cansasse de averiguar tais textos tão extensos. Chico Buarque de Hollanda, por exemplo, narra ter escrito letras imensas que tinham sua verdadeira mensagem embutida em meio a amenidades. Roberto Menescal conta, em seu DVD a respeito da Bossa Nova, que o Chico Buarque de Hollanda enviou para ele um verdadeiro pergaminho, daqueles que rolam pelo chão, quando pediu ao Chico que pusesse letra em sua música “Bye Bye, Brasil”, tema principal do filme dirigido por Cacá Diegues em 1980.
Não se pode dizer que a Bossa Nova teve uma data final, até porque está viva até hoje nas recriações dos músicos norte-americanos de jazz e na sua natural extensão internacional em países como o Japão e muitos outros da Europa. A música “Arrastão”, composta por Vinícius de Moraes e Edu Lobo, em 1965, criou uma espécie de cisão com o movimento, que viria a determinar, na opinião de alguns estudiosos, a transição da Bossa Nova para a então chamada MPB, que abraçaria diversas modalidades musicais brasileiras, tomando conta do cenário artístico até o começo dos anos 80. Tudo isso acontece dentro de um regime militar, mostrando, no mínimo, que a música brasileira jamais abandonou suas raízes, sua criatividade, seu talento e, principalmente, a sua coragem, representada por artistas que desenharam a história do seu jeito, debaixo de espinhosa censura e de desatinos arbitrários que levaram muitos deles ao exílio, à prisão e, em diversos casos, até mesmo à morte. O frisson e a atmosfera de euforia dos anos JK, onde surge a Bossa Nova, também inauguraria, na política brasileira, um repertório de práticas nefastas no campo econômico, onde um governo se endividava para o pagamento da dívida pelo próximo, contanto que “saísse bem na foto” em que JK saiu. Portanto, tudo nos leva a crer que a situação caótica, econômica e política, sem precedentes, vivida, hoje, pelo Brasil onde “...agora já não é normal o que dá de malandro regular, profissional, malandro com aparato de malandro oficial, malandro candidato a malandro federal, malandro com retrato na coluna social, malandro com contrato, com gravata e capital, que nunca se dá mal...” (Chico Buarque de Hollanda – “Homenagem ao Malandro”), com absoluta certeza é bossa pra lá de velha.
Maestro Ethmar Filho é mestre em Cognição e Linguagem, regente de corais e de orquestras sinfônicas há 25 anos