Artigo: @arletesendra.essagentedochico
Arlete Parrilha Sendra 19/07/2021 18:05 - Atualizado em 21/07/2021 13:25
... que leio nas palavras que me leem?
Revisitei a obra de Chico Buarque, usando o não-tempo que, paradoxalmente, a pandemia nos trouxera. Objetivava confirmar e/ou desconfirmar leituras que fizera, quando li “Estorvo”, (1990), ano em que fora lançado.
Personagem não nominado, o HOMEM de “Estorvo” — ao grafar em caixa alta, refiro-me também às mulheres — tivera sua identidade cassada e caçada em decorrência do lamentável 1964.
Sempre entendi que ao ler, nos lemos. Sempre entendi que ao escrever, nos escrevemos, ou seja, estamos em nossos próprios rascunhos tantas vezes descartados. E tantas vezes expostos.
Este pensar se apoia em Heidegger, filósofo alemão, que nos diz que “a linguagem é a morada do ser”, seja ela visual, cinética, sonora, ou..., ou..., mas é a verbal meu objeto de leitura. E em “Essa gente” me centro.
Conto que a palavra para mim é ponte pela qual nossa extimidade se deixa fotografar.
Conto que, muitas e inúmeras vezes, quem somos e como somos fica em arquivo no silêncio de nós mesmos.
Conto que pela ponte/palavra, os HOMENS transitam. Em trânsito também “o mundo”, “o vasto mundo”, a “complexa máquina do mundo” e “os ombros que suportam o mundo”, que drummondianamente falam em travessia . Por esta ponte transita “a matéria vertente do mundo”.
Conto que pela ponte/palavra, ou palavra/ponte, fluxos do real se mesclam à ficção, muitas vezes, como “linha de fuga” que permite ao HOMEM o direito de direito ter.
Pela ponte, o “eu” vive alternâncias em seu sistema de valores, desdobramentos de ações perpetradas por Clio que cartoriza a história. Por Psique tantas vezes em vulnerabilidade, e vezes tantas por Eros em seus constantes equívocos.
Centro-me, repito, em “Essa gente”, narrativa que Chico Buarque situa no século XXI, século que tem como mediador o mito de Narciso, como fora o mito de Galatea o mediador do século XX.
Donzela guerreira, segundo registros míticos, Galatea transformava os sonhos dos HOMENS em realidade e lhes deixava escancarados os portões dos amanhãs.
Conta o mito que Galatea fora esculpida por Pigmaleão e o traíra ao se apaixonar por Narciso e a ele outorgar o reino de Gea XXI.
Conta o mito que certa manhã, andando por geografias em descobertas, Narciso sente sede. E ao se debruçar sobre as águas de um lago, Narciso vê uma imagem. Por esta imagem se apaixona. Narciso se vira. E em estado de paixão, não vê as forças em mutação que o circundam. Não vê que janelas-janus, interceptam seu ver o outro, interceptam seu olhar o fora. Assim, Narciso não vê que por toda parte grassa uma pandemia de valores. E gerando narcisos outros, confirma: toda história é filha de seu tempo. É filha de enredos, de jogos ilimitados pelas peças plurais das interpretações.
Volto a Essa gente que nos traz como personagem o Rio de Janeiro, metáfora do Brasil. Em Essa gente, o espírito do lugar, a alegria da cidade, sua magia, seu enfeitiçar estão sendo substituídos por narcisos sociais. A falência moral e social retratadas no texto nos fazem pensar que a linguagem de Chico está bêbada.
Costurando fatos, Emanuel Duarte, personagem presente, e faz rima com Chico Buarque – esta comparação não é minha - tem seus traços biografados e qualquer semelhança não é mera coincidência.
Entendemos que narcisos do século XXI não percebem o esvaziamento de seu “eu” e de suas memórias. Não vê o esvaziamento de sua interioridade. E vivem sob a síndrome de alzheimer. E em estado afásico e amnésíco, vivem a solidão de seu estar-sendo em total estado de exaustão. Não veem os narcisos, que pena, que dentro da solidão mora o “só” mas mora também o “sol”.
E vivendo de permanentes “selfies”, não abrem espaços para o outro. Nos hds narcísicos só cabe o “eu”.
E volto à epígrafe: “... o que lemos nas palavras que nos leem?
Entendo que o acontecer do leitor se dá na liberdade que é seu limite. E assim como a macieira dá maçãs, a bananeira dá bananas, o acontecer da narrativa dá o perfil do leitor.
Entendo que é no jogo ilimitado da linguagem que a ciência se verticaliza.
Entendo que é no jogo ilimitado da linguagem que toda leitura se faz texto em criação. E se torna metatexto.

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