Arthur Soffiati - Estio
Arthur Soffiati - Atualizado em 01/07/2021 18:19
Com temperaturas toleráveis aos humanos, o planeta Terra apresentou, nos últimos dez mil anos, oscilações climáticas derivadas das estações do ano. Por mais que a amplitude térmica — vale dizer, a diferença entre a mais baixa e a mais alta temperatura em todo o mundo — seja rigorosa, ela não impediu que o ser humano ocupasse desde as áreas mais quentes do deserto às mais frias do círculo polar ártico. Só muito recentemente, munido de tecnologia avançada, o continente Antártico foi conquistado.
Ao longo desses 10 mil anos, ocorreram transformações estruturais naturais no clima, como fases longas de aquecimento e de elevação do nível do mar e de resfriamento, com a ampliação da área continental. A partir do início do século XV, a civilização ocidental cristã começou a se expandir, a dominar outros continentes além do europeu e a perturbar a integridade de outras culturas. Mais ainda: construiu pouco a pouco uma economia e uma correspondente tecnologia capazes de interferir nos equilíbrios ambientais dos últimos 10 mil anos, ou seja, do Holoceno.
A partir de 1970 e com mais intensidade a partir de 2000, o clima começou a apresentar alterações traduzidas em chuvas, ventos, ressacas e secas devastadoras. Quase todos os climatologistas e meteorologistas acreditam que a megatecnologia derivada da economia de mercado ameaça essa própria economia. Durante séculos, o capitalismo não reconheceu na natureza qualquer limite para a exploração e para o descarte de resíduos, notadamente quanto ao uso dos combustíveis fósseis. Extrair carvão mineral, petróleo, gás natural e xisto até a exaustão não traria qualquer efeito nocivo, mas geraria muito dinheiro. Queimar esses combustíveis ao máximo, lançando os gases da sua combustão na atmosfera, seria possível até o esgotamento deles. Mas a estrutura climática que se estabilizou a partir do século XIV manifesta limites, embora para a maioria seja difícil de acreditar. Lembro o Evangelho de São João, 4:20: “Se alguém afirmar: ‘Eu amo a Deus’, mas odiar seu irmão, é mentiroso, pois quem não ama seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê”. Traduzindo para a linguagem econômica: “Acreditamos no dinheiro, que vemos, mas não nos gases gerados pelo capitalismo, pois não os vemos”.
É o adensamento da camada formada por esses gases na atmosfera que está provocando fenômenos climáticos como se fossem bumerangues lançados por atiradores arrogantes e despreparados. Chuvas torrenciais, ventos arrasadores, oscilações brutais de temperatura e secas devastadoras. A Terra está mais quente. A Terra está mais seca. As temperaturas na Sibéria ultrapassaram 40° no verão. Anualmente, as florestas ardem na Califórnia e na Austrália. É de se perguntar como ainda existem florestas para queimar. Pedrogão, em Portugal, ardeu em 2017. Cientistas da Universidade do Minho advertem que o fogo pode voltar a qualquer momento por lá. O centro-sudeste do Brasil enfrenta a maior estiagem desde que as medições começaram a ser feitas, em 1930.
Dirão os céticos e os otimistas: não criemos pânico. É normal haver chuvas e estiagens mais severas. Contudo, examinemos o que aconteceu no centro-leste do Brasil desde 1500. Primeiro, a zona costeira foi ocupada por uma economia predatória que se tornou mais predatória ainda acreditando que a Mata Atlântica era inesgotável. Não era. Ela foi reduzida a 10% da sua superfície. A partir de São Paulo e de Minas Gerais, os descendentes de europeus chegaram ao Cerrado, bioma naturalmente mais seco que as florestas e sujeito naturalmente ao fogo na estação seca. Ainda no século XX, a literatura de ficção produzida no e sobre o Planalto Central retratava o Cerrado como um grande sertão. Com a fundação de Brasília, ele começou a ser devastado para abrir espaço a monoculturas e a pastos. Existem hoje ruralistas do Cerrado que defendem a proteção da Amazônia. Contudo, todos eles têm um passado de fogo.
Não se morre de velho sem chegar à velhice. Não se chega à crise climática estrutural do centro-sudeste do Brasil em um ano. Ela resulta de: 1 - desmatamento progressivo e raso; 2 - substituição da vegetação nativa pela agropecuária extensiva e intensiva; 3 - urbanização que supera a capacidade de suporte dos ecossistemas aquáticos da região; 4 - alteração profunda dos rios com represas e reservatórios; 5 - superpopulação urbana sedenta de água e de energia; 6 - secas progressivamente mais ingentes e prolongadas que as chuvas, ainda que torrenciais e arrasadoras; 7 - destruição da Amazônia, que produz rios voadores para o centro-sudeste; e 8 - aquecimento global. Essa conjunção de fatores cria uma situação de vulnerabilidade ambiental.
Não é de hoje que a seca e suas consequências se instalaram no centro-sudeste. Em 2001 e em 2014-15, a região foi assolada por estiagem devastadora e prolongada. Vivemos hoje, nessa parte do Brasil, enfrentando mais seca ou menos seca. Não tanto as chuvas. Os rios estão escravizados por barragens para criar lagos e gerar energia elétrica. Não haverá reequilíbrio, sempre precário, sem mudanças profundas que eternamente adiamos.

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