Imagine um cachorro, retirado da casa em que vive, se livrar de um colar elizabetano, superar dois muros gradeados de aproximadamente dois metros, cada, e percorrer cerca de 40 quilômetros até retornar ao seu local de origem nove dias depois. Pode parecer roteiro cinematográfico, mas aconteceu com Jou Boca Preta, um vira-latas de um ano e 10 meses que foi sozinho de Campos a Atafona, onde nasceu, foi criado e sempre teve certeza do carinho da sua família — a canina e a humana.
A história começou no último dia 1º, quando a psicóloga Leda Lysandro, dona de Jou Boca Preta, precisou trazê-lo a Campos para tratar uma ferida no saco escrotal. Saída de um casamento, ela deixou de residir em Atafona no ano passado, da mesma forma que o seu filho Henrique. Mas o ex-marido, o educador ambiental Luiz Henrique Vieira de Araújo, continuou no distrito de São João da Barra com Jou e as cadelas Chica e Dani, respectivamente mãe e irmã do cão aventureiro, que recebeu este nome em homenagem a um amigo de Luiz Henrique, Edson de Alcântara Teixeira, assim apelidado por Luiz e que faleceu em 2020. A mãe do cãozinho Jou, Preta, também morava com a família em Atafona, mas faleceu.
Se passou a existir distância física, isso não foi suficiente para diminuir a relação de Leda com os cães da família. Principalmente com Jou e Dani, mais apegados a ela, enquanto Chica acompanha Luiz Henrique para praticamente todo lugar.
— Eu fiquei prestando assistência quando necessário, visitando, mas não pude trazer nenhum para Campos, porque vim morar em um apartamento pequeno e tenho uma carga horária de trabalho muito extensa. Por isso, decidimos fazer essa guarda compartilhada dos cachorros — explica Leda. — E cada um escolhe quem vai acompanhar. Chica acompanha o Lulu (Luiz Henrique), e Jou e Dani sempre acompanharam a mim. Quando eu saio andando, eles vão atrás. Nunca deixou de acontecer, mesmo nos períodos em que eu fiquei afastada de lá — acrescenta.
Como sempre foi Leda a “enfermeira” dos cães quando houve necessidade de cuidados especiais, naturalmente ela quis ficar perto de Jou após o aparecimento da ferida, trazendo-o a Campos pela primeira vez. Mas não o levou para o seu apartamento. Foi definido que Jou ficaria por 10 dias na casa da mãe de Luiz Henrique, Maria Elizabeth Vieira de Araújo.
— Achamos melhor trazê-lo para Campos, para ficar mais perto de mim, de forma que eu pudesse cuidar da ferida dele, ver veterinário e tudo mais. A casa da minha ex-sogra é na esquina do meu trabalho, então, eu poderia dar a assistência em horários que ele precisasse de remédio e passar pomada — detalha Leda.
Acontece que a hospedagem na casa de Elizabeth durou menos de 48 horas. Na madrugada do dia 3, imagens gravadas pela câmera de segurança de uma residência vizinha mostraram o momento em que Jou apareceu na rua, às 2h15, sem o colar elizabetano que usava antes. Ele repetiu uma tentativa de fuga que já havia feito na véspera (2), quando fugiu na Pelinca enquanto era levado ao veterinário. Na ocasião, foi resgatado. Mas, na segunda vez, tomou rumo desconhecido.
— A gente fica na dúvida se o segundo muro ele pulou ou se passou pela fresta, porque na câmera só mostra ele passando em frente ao portão. Na quinta-feira (3), quando minha ex-sogra acordou, não o encontrou mais. Ela me ligou, e aí começou aquele processo horrível de busca — relata a dona de Jou.
Após o sumiço ser divulgado em grupos de redes sociais, foram vários os alarmes quanto à localização do cachorro. Na noite do próprio dia 3, a irmã de Leda, Grazielle Aquino, viu Jou na Pelinca, mas não foi possível alcançá-lo. Já no dia 8, uma amiga da família, Eduarda Ribeiro, informou ter passado por ele na BR 356, na altura da localidade de Degredo. Eduarda até tentou se aproximar, mas sem êxito, pois Jou demonstrava agitação.
Só na manhã do dia 12 aconteceu o reencontro entre o vira-latas e os seus donos, e não foi preciso ninguém buscá-lo na rua. É que Jou apareceu na casa de Atafona e, quando notado pelo filho de Leda e Luiz Henrique, já estava debaixo do banco onde se acostumou a ficar durante a vida.
— Eu não sei se o Jou fugiu para retornar à casa, não tenho essa certeza absoluta. Mas, sei que ele fugiu e imagino que tenha sido para isso (risos). Dentro da cabeça dele, que não consigo entender bem como funciona, quis voltar de qualquer maneira — afirma Luiz Henrique: — Mas eu não tive muitas dúvidas de que o Jou chegaria aqui em Atafona, porque ele é muito inteligente, Falei que achava que ele ia voltar seguindo o vento nordeste, e algumas pessoas citaram o fluxo dos carros na estrada, ou que talvez os cheiros de Atafona o conduzissem — complementa.
Para o especialista em comportamento animal Breno Garone, do Hospital Veterinário da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), a provável explicação científica para a atitude de Jou está na capacidade adaptativa da espécie canina, que tem o lobo como ancestral.
— O lobo é uma espécie altamente sociável, assim como a nossa. Isso quer dizer que ele depende de um grupo social para sobreviver. O que faz com que um grupo social se mantenha de forma coesa é justamente o desenvolvimento de laços afetivos, de vínculos entre os indivíduos desse grupo — comenta Breno. — Quando aconteceu a domesticação do cão, de 14 a 34 mil anos atrás, porque existem dados científicos divergentes, passamos a ter registros de um grupo social interespecífico, composto por indivíduos de espécies diferentes. E, consequentemente, pela primeira vez a gente tem o desenvolvimento de laços efetivos entre espécies diferentes. Foi um processo tão intenso que, hoje em dia, quase sempre o cachorro prefere a companhia humana do que a de outros cães. É uma coisa inata, os cachorros já nascem assim — detalha o veterinário.
Embora não haja definição absoluta quanto ao que guiou Jou até Atafona, há grande possibilidade de o faro apurado ter sido seu principal condutor.
— Geralmente, o que motiva o cachorro a fazer essas façanhas é o efeito estressor. E o que mais pode estressar um cachorro, sem dúvida nenhuma, é a privação de um grupo social com o qual ele já tem um caso afetivo. Quando isso acontece, ele vai, de qualquer forma, tentar restabelecer contato com esse grupo social que se afastou. O que motiva, a gente já sabe, mas ainda é um desafio descobrir o que guia o cão nessa empreitada. Provavelmente é o olfato, porque ele tem um olfato centenas de milhares de vezes mais potente que o nosso, fora outros sentidos. Já existem estudos sobre campos eletromagnéticos, alguns aspectos relacionados à audição e toda essa questão que ainda é uma incógnita científica, tem várias teorias — enfatiza Breno Garone.
O pertencimento a determinado lugar é outro aspecto motivador para atitudes caninas como a de Jou Boca Preta. Afinal, a partir da territorialidade, o cão tem a garantia de itens vitais como comida e água.
— Jou já fazia isso de pular muro, passar um dia fora e voltar, como todos os cachorros que tivemos — informa Leda Lysandro. — Mas, essa história de agora tem um significado muito próprio para mim. A jornada dele é a minha jornada. Morei em Atafona na infância, depois nunca deixei de ir, mesmo morando no Rio. Me casei e fui morar em Atafona, depois vim morar em Campos, voltei para Atafona quando tive meu filho. Agora, estou morando em Campos há 10 meses — salienta.
Entre ciência e poesia, fato é que Jou se sente em casa na foz do rio Paraíba do Sul. Para ele e para Leda, todos os caminhos sempre levarão a Atafona.