Qualquer tema que envolva Mário de Andrade, a meu juízo, adquire interesse para a pesquisa. Em 1919, o autor de “Pauliceia desvairada” foi, solitariamente, visitar o poeta Alphonsus de Guimaraens em Mariana. Ele mesmo deu conta dessa visita em artigo publicado na revista “A Cigarra”. Muitos anos depois, Carlos Drummond de Andrade dedicou um longo poema a essa visita.
Em 1927, Mário subiu o rio Amazonas até Iquitos, no Peru. Ele se encantou com Belém e encantou a cidade com suas palavras. Está se processando uma revisão do modernismo brasileiro e, particularmente, da Semana de Arte Moderna. Reclama-se que Mário, em suas viagens etnográficas à Amazônia e ao Nordeste, buscou contato com pessoas do povo e negligenciou os intelectuais dessas regiões que estavam tentando modernizar a cultura. Trata-se de crítica desinformada. Não se pode cobrar dos modernistas de 1922 que tenham valorizado apenas as culturas nacionais e regionais num mundo que marchava para a globalização. Hoje, questões discutidas há cem ou 50 anos não cabem mais. Contudo, cabiam muito bem na época. Além do mais, o próprio Mário registra os encontros que teve em Belém com Gastão Vieira. Em Manaus, conversou com Raimundo de Morais e Da Costa e Silva, além de visitar a exposição de Ângelo Guido.
Em Humaitá, foi saudado pelo prefeito Sérgio Olindense, que tinha interesse no modernismo. Com ele, manteve correspondência. Cinco dessas cartas foram publicadas por Carlos Heitor Castello Branco em “Macunaíma e a viagem grandota” (São Paulo: Quatro Artes, 1970). Com a abertura da correspondência completa de Mário, em 1995, é possível agora mapear seus contatos com a Amazônia e o Nordeste. Aqueles que receberam cartas de Mário nem sempre tiveram o cuidado de guardá-las. Se tiveram, muitas acabaram se perdendo depois da morte dos destinatários. Mário, contudo, guardou-as com cuidado e determinou que elas só fossem abertas 50 anos depois de sua morte. No Instituto de Estudos Brasileiros da USP, esse acervo merece atenção especial.
Numa das cartas a Sérgio Olindense, ele expressa suas impressões sobre Manaus: “De Manaus, gostei do pessoal, gostei de certos passeios, de certos momentos, mas a cidade propriamente, me desagradou. Guarde reserva disto. Toda essa falsificação de grandeza, todo esse mau-gosto exasperado e... morto de grandezas passadas, toda a falta de caráter individual (Santarém tem mais caráter até Fonte-Boa), os ficus, tudo isso e em ponto pequeno, me desagradou, me irritou. E me entristeceu principalmente porque Manaus sendo um milagre jogado no sertão, afinal das contas é um milagre feio, um milagre sem caráter e o que é mais horroroso ainda, um milagre já hoje sem razão. É triste, meu amigo, e quando penso em Manaus sinto que não gostei de Manaus.”
Um desses lugares que Mário apreciou nas cercanias de Manaus foi o lago do Amanium. Lá, ele tirou uma foto que considerou sua obra prima. “Fomos ao lago do ‘Amanium’, não escutei bem esse nome, preciso perguntar. Mas que coisa sublime, o lago, cercado inteirinho de mato colossal, calmo, uma calma encantada, em que os ruídos, gritos de animais estalam sem força pra viver. Solidão pura e livre, nada triste. Lá estavam as vitórias-régias, com os uapés e socós nas folhas.” (“O turista aprendiz”. São Paulo: Duas Cidades/Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976). Mesmo desencantado com Manaus, ele a encanta.
Em Iquitos, não houve tanto encantamento da parte do paulistano. Mesmo assim, ele anotou que “A gente peruana é bem mais bonita que a brasileira amazônica, a mudança é sensível, e não se trata de pessimismo nativista. E que gente sem complexo, dá inveja. O Peru é o melhor país do mundo. No Clube, vendo os interessantes de jornais e revistas de Quito, me afirmaram que os peruanos são os melhores desenhistas do mundo (nota: Mário trouxe de lá uma caricatura sua feita por Victor Moretz). Pelas duas horas, fui visitar o meu encanto desta terra, a pintora Zarela Menacho, numa casa de pátio que é a mais linda de Iquitos. Encanto de visita” (“O turista aprendiz”). A palavra “encanto” figura duas vezes na breve transcrição.
O grupo de excursionistas deu um pulo à Bolívia, como anota Mário: “Às dezoito paramos na Vila Marinho e damos um pulo na Bolívia, no posto aduaneiro, Vila Bela, que bela! Flores, muitas flores plantadas, ar de gostar da vida, galinhas, legumes... Voltemos ao Brasil. O trem lá vai sacolejando. E sou mesmo eu que me sacolejo monótono nesta que é das mais terríveis estradas de ferro do mundo“ (“O turista aprendiz”).
De volta a Belém, Mário faz uma sua breve incursão ao lago de Arari, na ilha de Marajó: “Vamos a Marajó. Às cinco e muito tomamos a lancha Ernestina pra atravessar a baía. Pelas oito, tomamos a Tucunaré menorzinha, e entramos pela boca do rio Arari (...) Enfim estamos noutra espécie de paisagem amazônica. O Arari principiou com um matinho ralo dos lados e uns igarapezóides de uma simpatia incomparável. As ingazeiras cobrem inteiramente as margens, folhudas, rechonchudas, lavando os galhos n’água do rio. Uns macaquinhos voam de galho em galho. As aningas floridas. De vez em quando o voo baixo das ciganas, parecem pesar toneladas. E uma abundância de trepadeirinha lilá, de que ninguém sabe o nome, cobrindo as margens folhudas. E a vista se abre em novos horizontes. São campos imensos, de um verde claro, intenso, com ilhas de mato ao longe, nítidas, de um verde escuro que recorta o céu e campo.” (“O turista aprendiz”). A passagem é longa e linda, merecendo atenção especial.
Ele se encantou também com a ilha do Mosqueiro, onde tomou banho de rio-mar. Quanto ao Nordeste, é necessária uma página à parte. Em carta a Sérgio Olindense, de 31 de maio de 1929, ele declara: “Descobri que sou nordestino. Jamais o meu corpo se sentiu tão bem como no Nordeste e meu espírito lá vivendo povo como nunca, entrou num paraíso adorado que me deixou melhor que Deus.”
Houve um encantamento em São Paulo, sua querida cidade. Em outro lugar e tempo, talvez um grupo informal de cinco pessoas que tinham suas próprias vidas não merecesse atenção dos estudiosos. Trata-se do Grupo dos Cinco, formado por Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia e Mário de Andrade.
Há dúvidas de que um grupo de cinco artistas buscando renovação na cultura despertasse interesse para a pesquisa se Mário de Andrade não participasse dele. Pensemos no Grupo dos Cinco com Ribeiro Couto, sem Mário. Por mais que os cinco trocassem cartas entre si, faltaria a presença inquieta e crítica do autor de “Macunaíma”. O grupo teve vida breve. Mais intelectuais e artistas participaram dele, ainda que eventualmente. Porém, cinco o caracterizaram mais. Não cabe conferir a nenhum deles qualquer caráter de idealização. Havia vaidades, disputas, complexo de inferioridade por parte de seus integrantes. Em Mário, existia a pretensão de liderança. Aliás, essa pretensão está presente em quase todas as missivas dele aos seus correspondentes dentro e fora do Grupo. Talvez apenas com Manuel Bandeira houvesse uma postura de ombrear-se de igual para igual. Quanto aos outros, prevalecia a atitude professoral de Mário.
Contudo, havia algo mais que a vaidade. Ela não sustentaria a trajetória de Mário por muito tempo. Por mais que a vaidade seja um traço intrínseco da sua personalidade, havia nele uma inquietação intelectual pouco comum nos escritores e artistas de seu tempo. Havia o descomunal desejo de construir um projeto de cultura para o Brasil que alcançou até desenhos infantis e renda de papel e linha.
A vida de Mário foi marcada por renúncias e investimentos pessoais, pelo celibato (de qualquer natureza), na compra de livros, no estudo de línguas e no financiamento de seus primeiros livros. Oswald era um folgazão indisciplinado que dilapidou suas finanças herdadas da família em viagens que não se converteram em maiores contribuições ao modernismo. Ele atraiu as atenções com seus manifestos e com seus livros na década de 1920 e foi saindo de cena. Manotti detinha um diploma de advogado, título ainda valorizado na época e que lhe conferia o tratamento de Dr. Mas seu talento se esgotou rapidamente. Anita Malfatti representou, com seus quadros na exposição de 1917, o estopim da Semana de Arte Moderna. Porém, não conseguiu manter interesse por sua obra. Além do mais, ela se sentia complexada por um defeito físico e pela estonteante beleza e talento de Tarsila do Amaral, a sinhazinha que rompeu com os costumes femininos de sua época. Mário era o pobretão do Grupo. Não tinha títulos acadêmicos. Não integrava família aristocrática. Economizava dinheiro para editar seus livros. Além do mais, não podia esconder que era negro, por mais matizada que fosse sua negritude. E, internamente, travava luta com seu homossexualismo, traço que Oswald tratava com deboche.
Mário viveu o seu tempo. Desenvolveu-se no primeiro momento modernista. Participou ativamente da Semana de Arte Moderna, que teve por sustentáculo a economia cafeeira paulista, e, ao mesmo tempo, autoconstruiu-se e ultrapassou seu tempo. Vários companheiros seus não conseguiram vencer seu momento com o mesmo vigor e serem merecedores do mesmo interesse que Mário de Andrade representa.