Arthur Soffiati - Rios: os de lá e os de cá
Arthur Soffiati - Atualizado em 28/05/2021 14:15
Não há grandes rios na Europa Ocidental quando comparados com os da América do Sul. Os mais conhecidos são o Danúbio, o Reno, o Elba, o Sena, o Tejo etc. Até a invenção da agricultura e do pastoreio, eles eram cercados de florestas temperadas, limpos, ricos em biodiversidade e livres de barramentos. Com a revolução agropastoril, o desmatamento de suas margens começou. Com a revolução industrial do século XVIII, a remoção florestal se acentuou e eles passaram também a receber resíduos poluentes. Tomemos como exemplo apenas o pequenino Tâmisa. Durante os séculos XIX e XX, suas águas foram barradas para regularização, fornecimento de água e cercados de cidades.
Até o século XVI, os descomunais rios da América apresentavam-se como os rios europeus no pré-neolítico: bacias florestadas não com matas temperadas, mas com florestas tropicais, águas limpas e livres de barragens, altíssima biodiversidade e saúde. Até os pequenos e minúsculos rios eram belos. Alguns nem eram vistos, de tão camuflados que estavam pelas matas. Eles encantaram muito os viajantes europeus no século XIX. Para os alemães Maximiliano de Wied-Neuwied e Hermann Burmeister, o Paraíba do Sul se assemelhava ao Reno em suas dimensões, mas era muito mais belo que esse em seu aspecto. Maximiliano deve ter cruzado o riacho Barrinha, que corta o atual município de São Francisco de Itabapoana, mas dele não faz nenhum registro, certamente por não merecer atenção diante de tanto rio grande ou por estar escondido na densa mata que lá existe. Hoje, não há mais floresta para escondê-lo, além das mutilações que ele sofreu. Ele continua invisível aos olhos de muitos.
No século XX, processaram-se duas tendências: os rios de lá — da Europa Ocidental, da Coreia do Sul, do Japão, da Nova Zelândia — passaram a ser restaurados. Os de cá, da América do Sul, sobretudo, continuam sendo vítimas de implacável destruição. O Paraíba do Sul e o Itabapoana, que nos são próximos, perderam as florestas de suas margens, não são mais navegáveis como outrora, sofreram erosão de margem, assoreamento, poluição e empobrecimento da biodiversidade. Não direi que todos os rios da Europa foram restaurados de forma exemplar. Conheci o Reno e seu afluente Meno, boa parte dos rios que sulcam Portugal e alguns que irrigam a Galícia. O Reno e o Meno são rios domesticados como cães de raça. São limpos e navegáveis por embarcações de grande porte. O despejo de lixo e de esgoto em suas águas é proibido. A biodiversidade deles é grande. Nas margens de ambos, instalaram-se lavouras, pastos, castelos, muralhas e cidades. Os rios foram integrados à paisagem. Mas barragens foram construídas em seus cursos. Não há mais florestas expressivas. Elas foram reduzidas a manchas.
Em Portugal e na Galícia, alguns rios podem enganar o observador incauto. Os rios Douro, Mondego, Tejo e Guadiana foram detonados e ainda não restaurados. O Douro está todo barrado. O Mondego foi todo transformado. O Tejo é o que está em pior estado. Na Galícia, a bela paisagem esconde o sofrimento dos rios. Enfim, não se pode, com exceções, afirmar que os rios da Europa estão restaurados em nível adequado. Que essa constatação não justifique a destruição dos rios brasileiros. Pelo menos, na Europa, certos países buscam aquilo que eles denominam renaturalização dos rios. No Brasil e certamente em outros países da América, o que ocorre com os rios é um processo violento de desnaturalização.
Atravessei o rio Amazonas em sua foz, de Belém à ilha de Marajó. Cinco horas de viagem. Quem navega esse mundo de água imagina-se em pleno mar. Perguntei-me quem seria capaz de destruir aquele tão gigantesco rio. Ao chegar na ilha de Marajó, encontrei lixo nas praias. Numa delas, o limo e o musgo colonizavam uma sandália havaiana, como a degluti-la aos poucos. Sei que o lixo, sobretudo o plástico, seria devorado pela natureza se cessasse seu lançamento nos rios e mares. Sim, é possível poluir um descomunal volume de água, como está acontecendo nos oceanos. Até nas mais recônditas praias, completamente desabitadas por humanos, seu lixo está lá.
Em recente reportagem, examinei o drama das cidades às margens dos rios Negro, Amazonas e seus afluentes. O nível das águas está subindo com as chuvas. Parece que mais um recorde será alcançado em termos de enchente. Quando apenas povos indígenas viviam nas margens desses grandes rios, as enchentes não os afetavam. Como seus assentamentos eram leves, bastava retirarem-se dali e fixarem-se em ponto mais alto. Hoje, não é mais possível. Acompanhei o transbordamento do rio Negro em Manaus. Embora a população ribeirinha costume construir palafitas, as águas subiram muito e entraram nas casas, sobretudo nos bairros mais pobres. Nunca pensei que fosse possível poluir os rios da Amazônia. Mas o que vejo nas telas, é a água do rio marrom e preta por lançamento de esgoto. Muito lixo boia sob as palafitas ou sob as pontes (marombas) que os governos municipais constroem para os moradores poderem alcançar suas casas.
E me pergunto: como conseguimos conspurcar os grandes rios da Amazônia?

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