“Floresta é o nome do mundo”, de Ursula K. Le Guin, foi publicado em 1972, ano da Conferência de Estocolmo, verdadeiro marco da discussão acerca das questões ambientais ainda hoje. Só em 2020, chegou ao Brasil (São Paulo: Morro Branco). Trata-se ficção científica. Utopia ou distopia? Talvez nenhum dos dois. Talvez literatura meio distópica. A grande inspiração vem da expansão marítima europeia, das invasões, de conquistas, colonizações, conflitos com nativos, massacres e destruição da natureza.
Esgotados os recursos naturais da Terra, seus habitantes vão para o espaço no sentido literal. Um dos mundos extraterrestres conquistados recebe o nome de Novo Taiti. O povo originário é constituído por seres pequenos, com corpo coberto de pelos verdes. O planeta é coberto por florestas. O que os terráqueos cobiçam é madeira. Ela vale mais do que ouro naquele momento do futuro. A globalização agora não se limita mais à Terra. Ela se expande para outros planetas, como se assiste agora com a exploração espacial. O domínio dos homens em Novo Taiti assume um caráter político na escrita de Ursula. As mulheres são importadas para casar ou para a prostituição. São as Noivas Coloniais e as Recreadoras. “Organizando e limpando, derrubando as florestas sombrias para a plantação de grãos, eliminando a escuridão, a selvageria e a ignorância primitivas, aquilo seria um paraíso, um verdadeiro Éden. Um mundo melhor do que a Terra devastada.” Sim, porque “Novo Taiti era, em sua maior parte: água, mares rasos e quentes interrompidos aqui e ali por recifes, ilhotas, arquipélagos e as cinco grandes superfícies em arco que ocupavam 2,5 mil quilômetros no Quadrante Noroeste do planeta. E todas essas erupções e bolhas de solo eram cobertas de árvores. Oceano: floresta. Em Novo Taiti, essas eram as opções: água e sol ou escuridão e folhas.”
Embora o planeta encantasse os humanos, a visão utilitarista que orientou a colonização da América será aplicada lá. Seus habitantes eram pacíficos. Ele não conheciam a guerra. Gostavam de sonhar acordados. Mas foram massacrados e afastados das florestas que protegiam. Suas mulheres foram estupradas. Aqui, aflora o feminismo de Ursula. Os pacíficos pigmeus verdes aprendem a ser guerreiros com os humanos e os vencem numa gigantesca batalha. O único humano que tinha interesse em conhecer a cultura dos nativos morre. Verdes e brancos fazem um acordo de armistício. Aqui, a ficção meio distópica de Ursula não acompanha mais a história da ocidentalização da Terra.
Era difícil ganhar notoriedade escrevendo textos referenciais, poesia ou prosa nessas quatro circunstâncias: ser mulher, ser negra, viver nos Estados Unidos, escrever nos anos de 1920. Nella Larsen conseguiu superar todas essas barreiras e se transformar num dos mais expressivos nomes literários da Renascença do Harlem, movimento literário formado por escritores negros. “Identidade” é um romance dela publicado em 1929, mas só lançado no Brasil em 2020, quase cem anos depois (Rio de Janeiro: Harper Collins). Filha de mãe dinamarquesa e pai caribenho, Larsen tinha traços brancos, mas pele negra.
“Identidade” narra, e narra bem, a trajetória de duas mulheres negras que conseguiam disfarçar suas origens por serem claras. Ambas foram criadas próximas e acabaram seguindo rumos distintos. Irene Redfield casou-se com um médico negro e foi morar em Nova Iorque. O marido não gostava do clima racista dos Estados Unidos e queria se mudar para o Brasil, julgando que o clima social aqui era mais sociável. Irene queria continuar nos Estados Unidos, com seu discreto trabalho em favor dos negros do Harlem. Ela só rejeitava suas origens se quisesse frequentar restaurantes proibidos a negros.
Clare Kendry, por sua vez, casou-se com um branco rico e racista. Ela conseguiu enganá-lo, tão brancos eram sua pele e seus traços. De beleza invulgar, Clare temeu que, ao nascer, sua filha lhe traísse as origens. Clare e Irene voltaram a se encontrar muitos anos após tomarem rumos distintos quando Irene visitava o pai em Chicago. Por muita insistência de Clare, Irene vai a sua casa e conhece o marido racista. Julgando que ela era branca como a esposa, esbanja seu ódio aos negros. Depois desse episódio, Irene acreditou que nunca mais seria procurada por Clare.
Foi então que Clare buscou se aproximar da amiga, viajando para Nova Iorque toda vez que o marido racista viajava. Quem era aquele mulher branca por fora e negra por dentro? Para Irene, não passava de uma oportunista e farsante, que nunca revelou suas origens ao marido e admitiu casar-se por dinheiro, correndo grande risco de ser desmascarada. Mas ao longo do romance, Clare se revela um personagem complexo. Aos poucos, aparece uma mulher que buscou o caminho mais fácil de ascensão social usando suas características físicas. Era bem melhor que lutar e casar-se com um negro ou com um homem pobre não-racista.
Ao frequentar com assiduidade a casa de Irene, Clare manifesta o desejo de participar de bailes e reuniões com negros. A integridade de Irene, aparentemente clara mas assumindo a condição de negra, começa a mostrar sua fragilidade diante da amiga indesejada. Clare é, sem dúvida, a personagem mais complexa do romance. Não pelos seus dotes de caráter, mas por suas contradições. Ela podia muito bem morar no exterior em vez de procurar a companhia da amiga de Nova Iorque e as reuniões com negros. Esse estranho comportamento leva Irene a suspeitar do interesse daquela mulher rica por seu marido. A insegurança de Irene leva-a a desconfiar que o marido estava fascinado pela beleza, elegância e pelo charme de Irene.
No todo, o romance não é tanto uma peça de protesto e luta contra o racismo. Tanto Clare quanto Irene contam com regalias de brancos bem situados na vida: boas casas, criados, bons colégios para os filhos e maridos bem empregados. Irene também tem um bom emprego. As questões de ambas as mulheres — principalmente de Irene — abandonam o social para mergulhar no íntimo. Irene tem suspeitas, ciúme e fricotes. Revela seu lado cruel de vez em quando.
Larsen escreve bem. Nada de malabarismo literários. Um narrador onisciente conduz a trama e passa a palavra para seus protagonista quando necessário.
Quanto à Giovanna Rivero, não sei muito o que dizer, embora eu possa apenas escrever sobre minhas impressões. Ela nasceu na Bolívia e mora nos Estados Unidos. É doutora em literatura hispano-americana pela Universidade da Flórida. É também autora de muitos livros. “Terra fresca da sua tumba” (São Paulo/Incompleta, 2021) é o primeiro livro dela publicado no Brasil. Reúne seis contos. Segundo a crítica, trata-se de uma escritora que lida de forma criativa com a morte. “Peixe, tartaruga, urubu”, primeiro conto do livro, apresenta alguma força. Ele relata a história de dois náufragos. Só um deles sobreviveu e foi narrar o infortúnio do que morreu à sua mãe. Há suspeita de canibalismo.
Não há terror nem surrealismo nos contos, como se anuncia. Nenhum se assemelha aos escritos de Ana Paula Maia, escritora brasileira que lida com a morte como pulp fiction, com humor negro. Giovanna é dispersiva. Não consegue definir o núcleo de suas histórias e enfatizá-lo. São contos arrastados, monótonos e desvigorados.