Micheliny Verunschk lança, logo no início do ano, o romance “O som do rugido da onça” (São Paulo: Companhia das Letras). A obra lhe custou muita pesquisa. Ela procura mergulhar na mente da menina índia Iñe-e, da nação amazonense miranha. Ela foi levada por Martius para a Europa, juntamente com o menino Juri, sob os protestos de Spix, que considerava essa prática coisa de traficante. Iñe-e e Juri integravam nações inimigas. Vários outros viajantes levaram nativos para a Europa, geralmente comprados. Esses conquistadores e viajantes tinham uma postura etnocêntrica, embora seja grande a contribuição deles para o conhecimento das ciências naturais e etnográficas. Os povos da América e da África, talvez mesmo os da Ásia, viviam em culturas inferiores à europeia segundo eles. Queriam que esses “bárbaros” fossem batizados e aculturados para serem salvos na Terra e no Céu. Fora do seu ambiente, eles morriam logo. Um deles, no século XVI, fugiu à regra e viveu mais de 80 anos, transformando-se num europeu mestiço com família numerosa.
É preciso criar uma ficção sobre a visão dos nativos sequestrados, já que eles não conseguiam compreender o mundo europeu, tanto quanto esse não conseguia compreender as culturas americanas. Iñe-e foi dada pelo próprio pai e, nas impressões criadas pela escritora, é enorme o desconforto da menina, que logo morreu. Para o europeu, os nativos da América estavam entre o animal e o branco. Havia a crença deste segundo que eles podiam se salvar, convertendo-se à cultura europeia.
A autora faz a escolha de narrar de forma onisciente. Só assim ela poderia entrar na alma da pequena índia. Buscando se posicionar numa visão multinaturalista, bem analisada pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, ela pôde mergulhar no espírito das pessoas e dos animais. A ficção flui bem no princípio, mas a entrada de Josefa, uma brasileira dos dias de hoje, da fala mítica da onça na forma de animal e da menina, bem como escritos de europeus em epígrafe, quebram a unidade do romance. A inserção de falas de líderes das nações nativas de hoje também parecem soltas. Alcir Pécora escreveu que o romance fica entre o realismo fantástico e a narrativa fabular.
Diante do pequeno rio Isar, a menina Iñe-e lhe devolve a vida que os europeus roubaram. Na visão multinaturalista, um rio tem voz. Ele se expressa com suas cheias, estiagens, poluição. Com apenas 293 km, afluente do Danúbio, parte da Áustria e da Alemanha se organizou em sua bacia. Para a menina, a fala do rio não é ouvida pelos europeus, mas por ela sim: “Isar das águas rasas. Isar, dura. Nasceu da estoicidade de um bloco de gelo, aprendeu a rugir com as feras da era glacial. Apenas tolera as intervenções que lhe fizeram, o derramamento de esgoto por tanto tempo, a construção do canal, as barragens. A revitalização de suas águas não apagou totalmente suas feridas.”
Da África, chega-nos mais uma vez a voz de Djaimilia Pereira de Almeida pelo breve romance “A visão das plantas” (São Paulo: Todavia, 2021). Breve mas denso. A autora leu num romance a história de um pirata e traficante com passado dos mais truculentos. Ele foi criança como todos nós. Teve mãe dedicada, ao que tudo indica. Mas ganhou o mundo traficando negros para a escravização. Numa viagem em seu navio, ele atirou cal nas pessoas traficadas que lá estavam sendo transportadas e as matou sem a mínima compaixão. Degolou um casal de holandeses com sua filha criança. Depois de velho, o pirata retorna a sua aldeia e se torna um dedicado jardineiro. Lembra da mãe, mas não sente saudades.
Numa passagem das mais fortes, Celestino (é o nome do pirata) narra sua crueldade para meninos curiosos que o visitaram na solidão da sua casa: “Vinde a mim, meninos, a mim que degolei gargantas e durmo o sono dos justos. Quereis saber o que matei? Matei macacos e cavalos. Serpentes, vespas, um elefante. Um crocodilo do tamanho de uma jangada: cortei-o em cinco partes. Matei dez mulheres, a uma delas cortei os pés. Matei um corvo. Raposas, ratazanas. Matei centenas de homens com as minhas mãos e elas não me caíram. Matei os sonhos de um milhar de outros. Queimei cabanas. Um dia, mordi o pescoço dum homem até lhe arrancar as veias para fora. Espetei uma lança no peito de um amigo. Roubei dinheiro. Rebentei o crânio de um albino contra uma rocha. E a seguir esquartejei-o.”
Djaimilia não revela o nome e a localização da aldeia em que Celestino vive seus últimos anos de vida. Ela fica perto do mar, talvez em Portugal. O que conta é a carreira fria e cruel de Celestino. Crueldade sem arrependimento, embora o padre da aldeia tenha lhe oferecido confissão. O mundo colonial português e europeu foi povoado de homens como Celestino. Agora, ele cuida de flores como se tivesse uma vida plácida e generosa. Ela vai se esvaindo. As plantas são indiferentes às pessoas que lhes fazem bem. Elas não se importam com o mundo. Elas não são como o cão, que abana a cauda agradecido pela comida. A maior parte da natureza é indiferente a nós. Não lhe importa se aquele que dela cuida é virtuoso ou assassino. “As plantas não se sentiam agradecidas. Tratavam o seu regador à semelhança da chuva que caía sobre elas nas noites de Outono.” Ele é um jardineiro fiel no fim da vida, mas as plantas lhe são infiéis ou indiferentes.
Da França, chega o singelo romance “As inseparáveis”, da pensadora e ativista Simone de Beauvoir (Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2021). Ele foi escrito em 1954, cinco anos após a publicação do famoso “O segundo sexo”. Em princípio, pode-se considerar que não foi difícil escrever esse romance que narra sua relação fraterna com Élisabeth Lacoin. Simone é Sylvie e Beth é Andrée. Elas se conheceram no colégio quando tinham nove anos e se tornaram amigas. É interessante conhecer o passado católico de Simone e o catolicismo sofrido das primeiras décadas do século XX. Simone parece ter desenvolvido por Beth mais que amizade. Ela amou a amiga de uma forma especial e muito forte. Beth, por sua vez, teve dois amores homens que não corresponderam ao seu sentimento de forma simétrica. Embora moça comportada, Beth tinha momentos de puro extravasamento.
O roteiro para o livro já estava dado. Trata-se de um romance autobiográfico com passagens muito belas que me remeteram a Proust e ao cineasta Jean Renoir. Registro apenas uma: “Passeei muito naquele verão. Andava pelos castanhais, ferindo os dedos nas samambaias, ao longo das trilhas, colhia ramalhetes de madressilvas e evônimos, saboreava amoras, medronhos, cornisos, bagas ácidas de uvas-espim, respirava o odor tumultuoso dos trigos-mouriscos em flor, colava-me à terra para surpreender o odor íntimo das urzes. Depois me aventurava no grande prado, ao pé dos choupos-brancos, e abria um romance de Fenimore Cooper. Quando o vento soprava, os choupos murmuravam. O vento me exaltava. Parecia que de uma extremidade da terra à outra as árvores falavam entre si e falavam a Deus; era uma música e uma prece que atravessavam meu coração antes de subirem ao céu.”
Trata-se de uma bela descrição das estações de países de clima temperado. O livro conta com documentos iconográficos: fotos e cartas das duas amigas. Andrée morreu jovem de encefalite viral.