Arthur Soffiati: Discutindo o triunfalismo (II)
Arthur Soffiati - Atualizado em 09/04/2021 12:29
Já em seu período de formação, a civilização ocidental cristã tentou se expandir. A primeira onda expansionista foi promovida pelos escandinavos entre os séculos VIII e XI. Tendo como base o norte da Europa, esses povos ligados por uma cultura própria bastante forte e ainda não muito cristianizados conquistaram terras dentro do próprio continente europeu, na Rússia e na África, chegando mesmo à América do Norte, onde instalaram colônias na Groenlândia e no Canadá. Houve guerra. Como ainda não havia arma de fogo, eles foram expulsos da América pelos povos nativos.
A segunda onda expansionista processou-se com as Cruzadas, entre os séculos XI e XIII, em direção ao Oriente Médio, ocupado pelos muçulmanos. Pretexto: libertar o Santo Sepulcro do domínio islâmico, o que significava um grande apelo popular. Motivo real: romper o monopólio do comércio oriental pelo Islã. Veneza foi a grande beneficiária do movimento cruzático. Se os cristãos conseguissem manter seu domínio na Palestina, o caminho para a Índia poderia ter sido alcançado por terra. Houve guerras e os europeus perderam.
A terceira tentativa começou em 1402, com o início da conquista do arquipélago das Canárias pelo espanhóis. As ilhas foram secularmente colonizadas pelos guanchos, povo em fase neolítica que alcançou as ilhas a partir do norte da África. Embora não contando com as armas europeias, os guanchos resistiram por quase um século aos invasores espanhóis. Essa luta continha todos os ingredientes das conquistas europeias posteriores: crença na superioridade do europeu sobre a natureza e sobre outras culturas, monocultura, grande propriedade e escravização de outros povos.
Os portugueses iniciaram sua expansão em 1415, com a conquista de Ceuta no norte da África. Assim, seguindo rotas diferentes, espanhóis e portugueses abriram caminho para a dominação europeia do mundo e para a construção da maior globalização conhecida pela humanidade. Houve muita violência física e simbólica. Tomando apenas o caso de Vasco da Gama como exemplo, ele castigava povos de outras culturas lhes cortando orelhas, narizes, mão e pés. Afundou um navio repleto de homens, mulheres e crianças que voltavam de Meca. Por outro lado, a imposição do cristianismo também violentava as outras culturas. França, Holanda e Inglaterra lutaram contra espanhóis e portugueses para tomar suas conquistas. Então, havia violência contra povos não europeus e violência entre os europeus.
Poucos contemporâneos dessa primeira fase da globalização ocidental entendiam como violentos esses métodos. Bartolomeu de las Casas condenou o genocídio dos nativos americanos praticado pelos espanhóis. No seu relativismo, Montaigne reconheceu que as culturas diferentes da cristã ocidental deveriam ser respeitadas. Os jesuítas protegiam os indígenas dos escravistas, mas procuravam cristianizá-los para inseri-los na economia de mercado europeu. Era natural que povos com cultura distinta da europeia adotassem a cultura imposta apenas na superfície e continuassem a praticar a sua. Manoel da Nóbrega queixou-se que nativos brasileiros frequentavam a missa, comungavam, iam para sua aldeia e participavam de rituais antropofágicos. Esse dualismo cultural será observado em vários lugares. E todas as nações europeias foram violentas.
Tomo dois exemplos que parecem incompatíveis, mas não são. O bispo José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho, no século XVIII, contestava Montesquieu com sua própria argumentação. O pensador francês afirmava que a superioridade dos europeus residia no seu espírito associativista e na sua organização social regida por leis. Azeredo Coutinho contestava o pensador sustentando que plantas, animais e humanos tropicais eram superiores ao europeu porque arrostavam as ameaças de forma solitária.
No entanto, entendia que os povos não europeus deveriam ser civilizados pela cultura europeia. Ou seja, que todos eles deveriam ser europeizados. Mas defendia caminhos diversos para a aculturação. Os nativos da América deveriam ser incorporados ao mundo europeu pelo desmatamento e pela pesca, atividades que já conheciam. Os africanos, por seu turno, deveriam ser europeizados pela escravização. Azeredo Coutinho era considerado um intelectual no mundo europeu periférico.
O segundo exemplo vem da posição de Marx sobre a rebelião dos sipaios sob a dominação britânica na Índia. Os sipaios eram soldados indianos que serviam no exército da Companhia das Índias Orientais sob a ordens de oficiais britânicos. A rebelião desses soldados expressava o descontentamento dos indianos em geral com a dominação. Ouvi de professores conservadores, em Campos, que os sipaios cortavam os seios de mulheres ocidentais em rodela. A rebelião foi massacrada pelos britânicos com o apoio de Marx. O pensador escreveu que só se consegue atingir o comunismo partindo de um contexto ocidental ou ocidentalizado e que a burguesia prepara o terreno para o comunismo ao construir uma base ocidental. Marx entendia que os indianos eram ainda muito atrasados por adorarem macacos e outros animais. O exército britânico deveria mesmo massacrar os revoltosos. Embora perdão apenas não baste, o papa vem condenando os excessos cometidos por cristãos no passado. Os marxistas estariam dispostos a pedir perdão em nome de Marx?

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