Arthur Soffiati: Romances de 2020 (II)
Arthur Soffiati - Atualizado em 05/04/2021 19:34
Em “Solução de dois Estados” (São Paulo: Companhia das Letras), seu mais recente romance, Michel Laub enfoca a trajetória de dois irmãos, entrevistados por uma cineasta alemã traumatizada pelo morte do seu marido por assassinato. A irmã é obesa. Pesa 130 quilos. O irmão é um empresário do ramo de fitness. A irmã sofreu uma agressão durante um debate sobre arte e política em 2018.
A trajetória de ambos começa no governo Collor. O pai do casal de irmãos favorece a vida da filha custeando seus estudos na Alemanha. O filho herda os negócios do pai depois de sua morte e fica cuidando da mãe. O rumo dos dois irmãos se encaminha em direções diferentes. A irmã dedicou-se à arte usando o próprio corpo. Ela sofreu bullying na adolescência por ser obesa. Agora, assumiu e exibe sua obesidade. Já o irmão seguiu uma rota que vai desembocar na tendência direitista do governo do Brasil a partir de 2019. É empresário evangélico e conservador.
A irmã é contestadora. Ambos discutem com a cineasta, expondo sua dor em alguns momentos. O romance é tratado na forma de um pré-roteiro com as duas vozes se manifestando alternadamente e com material extra a ser aproveitado. O título do livro, de alguma forma, refere-se à condição de judeu do autor, que defende a solução de dois Estados para a questão palestina: um Estado judeu e um Estado palestino. Essa solução poderia ser aplicada aos irmãos, que se afastaram sem a possibilidade à vista de uma reconciliação.
Michel Laub é um dos grandes ficcionistas brasileiros da atualidade na minha opinião. Ele usa uma técnica de aproximação do tema abordado de uma forma bastante original. Na primeira rodada, parece que aconteceu algo simples e bastante evidente. Na segunda rodada, os detalhes começam a aparecer. Na terceira, o que parecia simples começa a se mostrar complexo. E assim por diante. Ao pretender abordar a polarização política que domina o Brasil atualmente, ele remonta ao tempo do governo Collor de Mello, mas não se sai tão bem como nos seus romances anteriores. A técnica cinematográfica não parece ser a sua praia.
“Os supridores”, de José Falero (São Paulo: Todavia) é um romance forte. Foi muito elogiado pela crítica. Supridor é aquele empregado de supermercado que repõe o estoque de produtos retirados das estantes, das gôndolas. No caso do romance, são dois. Alguns artigos estão desparecendo misteriosamente. Ao dono da rede, o gerente diz suspeitar de roubo feito por funcionários, não por compradores. De fato, são os dois supridores que estão subtraindo os produtos. Um deles é inteligente e culto para seu grau de instrução. É um simpatizante de Marx oriundo da margem da sociedade. Ele mora em favela, lê e reflete muito sobre sua condição. Explica para o colega o que vem a ser mais-valia sem usar esse conceito. Roubar alguns artigos, portanto, não é roubo, mas apropriação do que pertence ao trabalhador.
Mas esse homem sabe que suas ideias não transformarão a realidade. Ocorre-lhe, então, valer-se de algum meio para enriquecer e atina com a venda de maconha. Seu colega e amigo não entende nada, mas confia em suas palavras. De fato, a venda da droga não atrapalha as gangues das favelas, pois elas trabalham com crack. Ele monta uma quadrilha que atua sem tumulto para não despertar suspeita e monta um esquema que envolve o próprio supermercado.
Confesso que o penúltimo capítulo do livro me deixou em suspense. Fiquei ansioso com seu desfecho. Mas o último parece ter invalidado o romance, pois ele se trata de um diário ou de um relato que devia ser feito na primeira pessoa. Ele foi escrito pelo homem inteligente, que acaba preso. Ora é um narrador onisciente que conduz o romance, ora é o presidiário, que é também personagem do romance na terceira pessoa. O mais convincente seria, aqui, usar o gênero diário, como fez Graciliano Ramos. Além do mais, parece um romance destinado ao cinema.
Em “O impostor” (São Paulo: Todavia, 2020), Edgar Telles Ribeiro combina realidade vivida com realidade aprendida. Um casal idoso visita a Itália e conhece o vulcão Vesúvio, em cuja cratera um tio de sua mãe teria caído. Verdade ou lenda? Mistério. O homem velho vive a realidade e delira. Confunde seu ser com outro. Repentinamente, está de volta ao Brasil com seu neto. Romance interessante, posto que quase ignorado no ano do seu lançamento. Ribeiro é autor de treze livros.
“A casa na rua Mango”, de Sandra Cisneros (Porto Alegre: Dublinense, 2020), é um livro lindo. Ele não data de 2020, mas foi traduzido para o português e publicado no Brasil nesse ano. A autora, de família mexicana, recupera seu passado na rua Mango, em Chicago, com o olhar de menina que foi, vendo o mundo de forma mágica, com seus moradores que lhe pareciam envoltos num clima de magia. Ela não esquece esse olhar ao crescer. Não se trata de ver a criança e desconstruir seu olhar, mas de recuperar suas impressões infantis.
Há um toque de Fellini nesse diário que se transforma em romance. “Dizem que o Conde é casado e tem uma mulher em algum lugar. Edna fala que viu a mulher uma vez quando o Conde a trouxe para o apartamento. A Mãe fala que ela é bem magrinha, loira e pálida como uma salamandra que nunca viu o sol. Mas eu a vi uma vez também e ela não é nada disso. E os meninos do outro lado da rua falam que é uma senhora alta e ruiva que usa calças cor-de-rosa apertadas e óculos verdes. Nós nunca concordamos sobre a aparência dela, mas nós sabemos uma coisa. Toda vez que ela chega, ele a segura firme pela dobra do braço. Eles entram rápido no apartamento, trancam a porta atrás deles e nunca demoram muito.”
O segredo do livro está em conservar esse olhar mágico, mesmo sabendo, agora adulta, que não se trata de verdadeira esposa. De ponta a ponta, o livro mantém o olhar da criança bem preservado.
A Editora 34 lançou o livro “A gaiola”, novela do mexicano José Revueltas. Alguns diriam que não é um conto nem um romance. Grande demais para conto e pequeno demais para romance. Parece uma discussão que jamais acaba. Mário de Andrade propôs que conto é o que seu autor considera como tal. “A gaiola” (“El apando”, no original) data de 1969. Só agora chega ao Brasil em português. Revueltas é considerado um dos melhores escritores mexicanos. Como não sou crítico nem analista literário, fiquei com a sensação de que o autor trata de maneira muito formal e protocolar a relação de três presidiários da mais alta marginalidade e miséria.
Por fim, “A barata” (São Paulo: Companhia das Letras), do inglês Ian McEwan. Seus romances são sempre muito criativos e mirabolantes. Se Machado de Assis dá voz a um morto em “Memórias póstumas de Brás Cubas”, McEwan transforma uma criança em gestação em narrador em “Enclausurado”, ou dá sobrevida ao físico Alan Turing e leva a Inglaterra a perder a Guerra das Malvinas para a Argentina. Em “A barata”, ele se vale de “A metamorfose”, de Kafka, para transformar uma barata em humano: “Naquela manhã, Jim Sams, inteligente mas de forma alguma profundo, acordou de um sonho inquieto e se viu transformado numa criatura gigantesca. Permaneceu por bom tempo deitado de costas (não que fosse sua posição predileta) e contemplou, consternado, seus pés distantes, a escassez de membros. Apenas quatro, obviamente, e bastante rígidos. Suas perninhas marrons, das quais já sentia alguma nostalgia, estariam se agitando alegremente no ar, embora sem a menor utilidade.”
Assim começa o livro, uma sátira ao primeiro-ministro inglês Boris Johnson. Mas, para que as baratas não se ofendam, ele adverte antes do começo que “qualquer semelhança com baratas, vivas ou mortas, é mera coincidência.” Apesar da criatividade inicial, “A barata” é um livro escrito em momento de descanso do autor, como fazia Thomas Mann.

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