Edgar Morin está na véspera de completar 100 anos. Atualmente, a longevidade das pessoas aumentou graças a mudanças de hábitos e à medicina, mas a maioria dos que passam de 80 anos vive sem saber que vive. O mundo das pessoas longevas, sobretudo depois da aposentadoria, vai se restringindo, como se apenas o universo do trabalho lhes interessasse. Creio que o mundo fora do trabalho, o mundo em que vivemos, pouco ou nada interessa à maioria dos idosos. Com o avanço da idade, parece que a imaturidade dessas pessoas de vida longa torna-se mais perceptível.
Não aconteceu esse empobrecimento interior com Edgar Morin. É claro que a idade lhe impôs restrições, mas sua inteligência continua fulgurante, e sua cultura se enriquece com o passar dos anos. Pude ouvir sua voz sonora e potente por duas vezes em 2020, numa live sobre a Covid-19 e numa aula transmitida para o mundo todo. Descobri um Morin falando espanhol imperfeito mas compreensível. Além do mais, três livros seus foram lançados no Brasil em 2020: “Conhecimento, ignorância, mistério” (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil), “A aventura do método” (Sesc/São Paulo) e “É hora de mudarmos de via: as lições do coronavírus”, com a colaboração de Sabah Abouessalam, sua mulher (Rio de Janeiro: Bertrand). O primeiro saiu na França em 2017. O segundo data de 2015, e o terceiro foi escrito, publicado e traduzido para o português em 2020.
Quem conhece a obra de Morin dirá que esses três livros repetem livros anteriores seus. Em outras palavras, eles não trazem nada de novo. Quem não o conhece ou o criticará pelo seu método dialético/dialógico que mistura sua vida com seu pensamento ou encontrará dificuldade com sua abordagem complexa da realidade. A repetição é inevitável. Qualquer pensador que tenha vivido e escrito, sendo responsável, não pode ser novidadeiro. O que Morin faz é analisar o mundo atual à luz do método da complexidade, que o consagrou junto àqueles que o conhecem.
A academia tem sido injusta com o intelectual francês. Fechados em seus departamentos, alheios ao que fazem seus vizinhos, os acadêmicos interpretam o mundo de forma parcial, pois olham o todo através da parte, da sua especialidade. Fora dela, sua opinião equivale a uma pessoa que toma conhecimento da realidade por jornais e revistas. Mas, o que a academia não perdoa em Morin é a sua formação autodidata, é não ter se formado numa universidade. É ser um generalista e não um especialista. É se interessar pelo Universo desde sua formação, passando pela física, química, biologia, história, antropologia, sociologia. É conhecer parte de vários aspectos do todo em lugar de se empenhar em conhecer tudo de uma parte.
Morin tem plena consciência da rejeição que sofre nos meios acadêmicos, principalmente nos franceses, onde suas propostas de reforma da educação têm sido sistematicamente rechaçadas. Ele mesmo diz que é mais aceito no mundo extraeuropeu do que na Europa. Não lhe perdoam também a liberdade de valer-se do curso da sua vida para explicar o curso das suas ideias. De fato, em “A aventura do método”, livro em que resume a construção dos cinco volumes de “O método”, sua obra máxima, ele não divorcia sua trajetória de vida da formulação do seu pensamento. Se o fizesse, ele seria desonesto consigo próprio e com seus leitores. De maneira mais resumida, sua vida está presente em “As lições do coronavírus”.
Não é possível dissociar vida e obra em Morin porque ela, em si, é uma obra rica, como expôs em “Meus demônios”, “Meu caminho” e “Minha Paris, minhas memórias”, pelo menos. Ele não apenas defende uma abordagem complexa da realidade, como apresenta a complexidade da sua vida. Sua mãe não podia ter filhos. Havia perdido um. Mesmo assim, ficou grávida novamente. Ela ou o bebê morreria num tempo em que a medicina não havia alcançado a fase atual dos milagres. Mas ambos sobreviveram. Morin nasceu em 8 de julho de 1921, ficando meia hora entre a vida e a morte. Sua mãe contraiu o vírus da gripe espanhola e a superou, mas ficou com sequelas cardíacas. Foram elas que ceifaram sua vida em 1931. Morin tinha quase 10 anos e nunca se recuperou da perda.
Cedo começou sua vida intelectual com a leitura dos intelectuais influentes entre 1930 e 1940. Ele leu Anatole France, acompanhou a invasão da Etiópia pela Itália fascista em 1935, a vitória da frente popular na França em 1936, a guerra civil espanhola entre 1936 e 1939, a invasão da China pelo Japão militarista, e a assinatura do pacto entre Stalin e Hitler dividindo a Polônia. Embora manifestando independência intelectual, Morin filiou-se ao Partido Comunista Francês sem perder seu senso crítico. Escreve ele que, na década de 1930, “Tudo era problema: democracia, capitalismo, fascismo, antifascismo, comunismo stalinista, comunismo antistalinista (trotskismo), reforma, revolução, nacionalismo, internacionalismo, terceira via, guerra e paz, verdade/erro.”
O mundo de hoje é complexo e resistente a interpretações e propostas de solução. Mas o mundo da juventude de Morin estava impregnado de tendências e de simplificações. Com um rótulo, a pessoa podia ser execrada ou exaltada. Foi esse mundo que ensinou Morin a ser tolerante e a perceber que não existe um lado totalmente certo e outro totalmente errado. Ao mesmo tempo em que Morin tece suas críticas, ele busca compreender o diferente. Sua independência não poderia ser suportada por muito tempo pelo partido comunista e pelas diversas correntes marxistas. O divórcio entre os dois começa com o lançamento de “Ano zero de Alemanha”, em 1946, seu primeiro livro.
No fim de 1950, o divórcio estava consumado. Morin acompanhou os acontecimentos expressivos da década para escrever “Autocrítica” (1959) e romper não somente com o PC, mas também com o marxismo. Ele estava livre para fazer incursões em outros rincões. Toda a década de 1960 foi como que um aquecimento para escrever os seis volumes de “O método”. Mas ele continuou atento ao mundo. A melhor análise dos movimentos de 1968, na minha opinião, é dele. Em 1972, ele lançou “O paradigma perdido”, lançado no Brasil em 1975 com o título de “Enigma do homem”. Este livro contém o projeto de “O método”.
Morin continua estudando, mas se alimenta de uma fonte que parece inesgotável: os saberes que organizou a partir dos anos de 1970. “As lições do coronavírus”, por exemplo, baseia-se bastante nas propostas utópicas apresentadas em “A via” (2013). Neste livro, ele analisa o mundo, seus problemas e seus caminhos promissores, para propor uma utopia. Morin nunca esboçou uma distopia, mas utopia em seu entendimento é uma ordem-desordem-organização. A boa utopia é aquela possível. A boa utopia não é um mundo perfeito como no livro de Thomas Morus. Impossível uma ordem sem desordem e sem organização.
No seu mais recente livro, ele examina a brecha que a pandemia abre para que se comece a construir um mundo melhor. Ele nunca propôs o melhor dos mundos, mas um mundo melhor. Mesmo assim, levando em conta os entraves para a construção desse mundo. O principal deles agora, segundo o autor, é o neoliberalismo. A humanidade jamais poderá se organizar por conta própria, segundo as regras do mercado. O Estado não pode desparecer como entidade reguladora. O Estado não pode reaparecer em sua faceta totalitária. O Estado não pode se eximir de sua responsabilidade frente à crise ambiental. Ao contrário dos intelectuais de sua geração, que só divisavam a humanidade, Morin a situa no contexto ambiental de forma enfática.
Por fim, para não tirar do leitor o prazer de se deleitar com seus mais recentes livros publicados no Brasil, há pelo menos uns 20 anos, venho refletindo sobre a globalização. Ela é fruto da expansão europeia pelo mundo. Houve outras globalizações antes da atual, mas nenhuma teve o alcance da atual. Diante dela, os neoliberais a exaltam. Os conservadores a repudiam. Mesmo setores de esquerda a abominam. No Brasil, o Governo Gederal aglutina correntes que desejam o Brasil como pária da globalização. Em outras palavras, fora dela. Por outro lado, a corrente neoliberal quer o Brasil integrado nela porque isso significa dinheiro.
No livrinho “As duas globalizações” (2002), Morin examina a globalização-desglobalização, exame que ele retoma no seu livro sobre o coronavírus. Não é mais possível fugir da globalização, mas não é possível globalizar todas as dimensões da vida. Mesmo que os países adotem políticas para uniformizar o mundo, ele não é uniformizável. Sempre há bolsões de resistência. Assim, onde for possível e desejável a desglobalização, ela deve ser promovida. As nações nativas do mundo devem ser protegidas. As culturas locais também. Não carecemos de avião para deslocamentos de 200 quilômetros.
O exemplo que me ocorre é do grupo indígena que habita a ilha Sentinela do Norte, na Índia. As leis indianas proíbem a entrada de cientistas, missionários e turistas na ilha. Um missionário tentou entrar nela e morreu flechado. Esse povo é o mais isolado do mundo e mantém íntegra a sua cultura. Não conhece rádio, televisão, CD, DVD, computador, celular e outras tantas bugigangas que o mundo ocidental e ocidentalizado criou para ganhar dinheiro. A mente globalizada perguntará como é possível viver sem celular. A gente vive com o que conhece. Esse povo que habita a ilha não sente falta das nossas quinquilharias por não as conhecer. Mas essa desglobalização local ou não-globalização só está sendo possível pela globalização. A Índia, país que optou pela globalização, ao contrário de Gandhi, que desejava a recuperação da cultura indiana tradicional, não permite que Sentinela do Norte seja envolvida pela globalização.