“Eu não consigo respirar”. As últimas palavras do cidadão afro-estadunidense George Floyd, morto por um policial com o joelho sobre seu pescoço em maio do ano passado, viraram título de uma canção do músico fidelense Marcelo Benjá, radicado em Campos há mais de duas décadas. Com trechos como “Intolerância vem pelas redes / um novo navio negreiro” e “Quantas faces o ódio tem?”, a obra fará parte do EP “Os Invisíveis”, que Benjá planeja lançar no primeiro semestre deste ano.
— Esse EP vai falar sobre a luta das minorias no nosso país. E aí, obviamente, o tema racismo vai estar presente, como em outras canções também desse EP. Tem uma chamada “388”, que é o tempo (em anos) que a gente teve de escravidão oficial no Brasil. Todas as canções do EP vão abordar a vida e a luta diária das minorias aqui no país — comentou o artista, que se inspirou no recém-lançado livro de contos “Invisíveis”, do campista Adriano Moura, para batizar o seu próximo álbum.
A composição de “Eu não consigo respirar” se deu a partir do assassinato de George Floyd, que ganhou repercussão em todo o mundo e gerou a onda de manifestações com o tema “Vida negras importam” (em inglês, “Black lives matter”).
— Aquela cena do policial ajoelhado no pescoço dele nunca mais vai sair da minha cabeça. Foi uma das coisas mais bizarras que eu já vi na vida. No dia em que vi aquela cena, logo que aconteceu, eu comecei a escrever a canção e não tinha terminado. E aí, os casos “isolados” são diários... Teve o “caso isolado” do Carrefour e outros. Os fatos foram se juntando e acabaram compondo a letra dessa canção, que não reporta só o caso George Floyd, mas outros acontecimentos e outros personagens também — explicou o cantor e instrumentista.
Presença frequente na noite campista antes da pandemia da Covid-19, Marcelo Benjá relatou já ter sofrido na pele casos de racismo.
— A gente, como músico, atua em vários tipos de cenários diferentes: em lugares humildes, casas humildes, e em áreas nobres, em casas de quem tem muita condição, muito dinheiro. E nestes lugares, a diferença de tratamento das pessoas pela cor da pele é muitas vezes muito nítida. Já vivi uma situação embaraçosa, inclusive, com membros da minha banda, que são brancos. Houve diferença de tratamento, até que a pessoa contratante soube que eu não só era integrante, como era o líder do trabalho, e aí a coisa mudou. Mas, até então, eu estava sendo tratado como se fosse, sei lá, um desconhecido, um estranho, um qualquer — relatou Benjá. — Essa diferença de tratamento eu experimentei em vários outros locais e eventos. A sensação que a gente tem, para ser muito sincero, é que o nosso caminho é sempre mais longo, a nossa jornada é sempre mais difícil — lamentou.
Apesar de ter feito o lançamento simbólico de “Eu não consigo respirar” no YouTube e em redes sociais no último dia 20 de novembro, quando foi celebrada a Consciência Negra, o músico deseja que a luta antirracista se estenda durante todo o ano e seja levada para espaços como rodas de conversa e até mesmo as salas de aula.
— Eu acredito que as coisas evoluíram e estão evoluindo, sim. Não em Campos especificamente, mas, de forma geral, as coisas que simplesmente não eram faladas antes, hoje, estão sendo faladas. E a gente tem artistas negros aqui, em diferentes áreas de atuação, que estão fazendo o seu papel, estão comprando essa briga, se expondo e falando isso. Posso citar a (cantora) Simone Pedro, o próprio (ator e escritor) Adriano Moura, entre outros que têm falado sobre isso, têm trazido essa discussão para os seus trabalhos — comentou Benjá. — A gente ainda tem muito para avançar. Eu gostaria que fosse algo mais constante e frequente. Falar na semana da Consciência Negra, no mês ou no Dia da Consciência Negra, isso já não causa impacto. Eu acho que não causa efeito, as pessoas já esperam isso, é mais do mesmo. Essa abordagem precisa ser frequente, precisa continuar, não pode parar e ser retomada apenas em dias específicos — pontuou.
Prova da relevência do que diz Marcelo Benjá são determinados comentários por ele recebidos em publicações nas redes sociais após se posicionar ativamente sobre o movimento negro. São mensagens como “mimimi” e ”todas as vidas importam”, interpretadas pelo músico como postagens com intuito de desqualificar a luta antirracista, ainda que replicadas de forma inconsciente por algumas pessoas.
— Eu resolvi usar tudo o que faço para transmitir essa mensagem, para levar isso no meu trabalho, nas coisas que eu escrevo, nos eventos que eu faço. Isso vai estar sempre lá, porque eu não consigo dividir a minha visão social, política, muito menos a cor da minha pele daquilo que eu faço. Eu acho que a arte em geral é a expressão do indivíduo, onde ele coloca para fora aquilo que está nele, aquilo que ele é. A arte é o que eu sou. O meu trabalho é o Marcelo, sou eu mesmo. Eu não consigo dividir essas coisas. E aí, em tudo o que eu fizer, essa crítica, essa conversa, essa reflexão vai estar lá — enfatizou.
“Eu não consigo respirar”
(Marcelo Benjá)
Na minha janela eu vi o ódio Crescendo, ganhando espaço Mostrando a cara antes velada Nas ruas, nos guetos, nas praças
O preconceito representado Passou a desfilar sem medo Intolerância vem pelas redes Um novo navio negreiro Um novo navio negreiro
Quantas faces o ódio tem? Político, empresário, pastor ou juiz Ajoelham no pescoço Pela família e pelo país
Eu não consigo respirar Ei? Eu não consigo respirar Eu não consigo respirar
Medo de ser preso, de ser estuprado Medo de ser livre, medo de ser amado Medo da polícia e do deputado Medo da milícia judaico ou cristã
Medo do medo Medo de ter medo Medo do medo Medo de ter medo
Medo do medo Medo de ter medo Medo, medo... Medo, medo...
Quantas faces o ódio tem? Político, empresário, pastor ou juiz Ajoelham no pescoço Pela família e pelo país
Eu não consigo respirar Eu não consigo respirar Ei? Eu não consigo respirar Eu não consigo respirar