Cinema: Reflexões, jazz e o pós vida
Felipe Fernandes - Atualizado em 12/01/2021 12:38
Não é exagero dizer que a Pixar é, nos últimos anos, o estúdio mais criativo e ousado de Hollywood. Com sua mistura de inventividade e esmero técnico, ela constrói, a cada novo filme, um padrão de qualidade muito alto. E uma das principais características dos filmes do estúdio é o fato de que eles conseguem entreter diferentes faixas etárias e de maneiras diferentes.
Desde o lançamento de “WALL-E” (2008), o estúdio vem construindo uma relação temática muito forte com os adultos, sem nunca perder aspectos lúdicos e elementos que atraiam o público infantil. Alguns desses filmes trabalham temas complexos de maneira criativa e acabam provocando profundas reflexões a partir de um estilo de filme que, a princípio, não teria essa característica. Neste sentido “Soul”, o novo lançamento do estúdio, é o maior exemplar nessa relação com o público adulto.
O filme conta a história de Joe Gardner (Jamie Foxx), um pianista fã de Jazz que dá aulas para crianças desinteressadas em uma escola, enquanto busca uma grande oportunidade para construir sua carreira musical. Quando essa oportunidade chega, ele acaba sofrendo um acidente e ingressa em uma incrível jornada, onde vai repensar sua forma de ver a vida.
Dirigido por Pete Docter (“Divertidamente”) e Kemp Powers (co-diretor, seu primeiro longa nessa função), o filme é ambientado em Nova York e traz um adulto como protagonista, sendo o primeiro longa do estúdio a não trazer um universo majoritariamente infantil.
O roteiro traz uma dinâmica comum em muitos filmes da Pixar, que é a do personagem insatisfeito que se perde de casa — ou do seu caminho — e entra em uma jornada de retorno que provoca o autoconhecimento, mudando sua visão de mundo. Neste sentido, o roteiro não inova, mas são as formas para se contar essa narrativa e os temas abordados que fazem a diferença em “Soul”.
Assim como em seu longa anterior, Pete Docter cria uma narrativa onde ele pode misturar elementos da vida cotidiana com um universo rico em possibilidades e totalmente ligado com questões pessoais de diversos personagens, criando relações intimistas com o público e um elo poderoso com o mundo real.
Se em “Divertidamente” ele explora um universo interior dentro do subconsciente de cada um, dando vida e personalidade às emoções e à forma como lidamos com elas, aqui ele trabalha com possibilidades ainda mais subjetivas.
O pós vida é um mundo de infinitas possibilidades estéticas, que ganham muito colorido e trazem o apelo lúdico do filme. Misturando cores, diferentes estilos de traços e formas — o estilo abstrato dos organizadores em contraste com o restante da animação me cativou —, essa dinâmica do roteiro mistura as duas diferentes realidades, permitindo ao longa recriar Nova York de uma maneira minuciosa e brilhante, e ter toda liberdade criativa na construção de um mundo imaginário.
Curioso como o pós vida é retratado como um lugar organizado, com hierarquias e burocracia, tudo ancorado por um visual colorido e dinâmico que ajuda na compreensão de muitas das questões apresentadas.
Abordando questões filosóficas como nosso propósito na vida, os próprios conceitos de vida e morte, e fazendo diversas críticas ao nosso estilo de vida moderno — as pessoas perdidas naquela espécie de deserto e o interior daquela couraça são particularmente brilhantes —, “Soul” promove fortes reflexões.
A obsessão do protagonista com o próprio sonho e a forma como fecha as portas da sua vida para tudo são só a ponta dos diversos temas e críticas sociais que o filme traz sobre a forma frenética e miserável como a sociedade moderna lida com tudo.
A relação de Joe com a alma Vinte e dois (Tina Fey) tem uma dinâmica interessante, pois, na jornada de descoberta, eles alternam nas funções de mentor e aprendiz, dependendo do momento da trama. Essa dinâmica permite que ambos cresçam, descubram novas possibilidades juntos e vejam no conflito do outro verdades sobre si mesmos.
São tantas as mensagens e os detalhes que fica a sensação de que, em uma segunda visita, o filme vai nos permitir descobrir novos detalhes, aprofundando e enriquecendo ainda mais a experiência.
A música é um elemento fundamental dentro do filme. A começar pelo título, um trocadilho entre alma (soul em inglês) e o estilo musical soul, enraizado na cultura negra e com origens no jazz.
A música dita o ritmo do filme, sendo o jazz uma escolha perfeita, pois é ele o estilo musical mais livre e imprevisível, criando uma rima narrativa com alguns temas do filme. A trilha também varia de acordo com o universo que acompanhamos: o trabalho composto pela dupla Trent Reznor e Atticus Ross é um dos pontos fortes do filme e uma das melhores trilhas desse ano.
“Sou”l é um filme divertido e reflexivo que dialoga demais com o ano de 2020. Num ano em que fomos forçados a desacelerar e repensar muita coisa, o novo lançamento da Pixar chega em um momento perfeito, nos fazendo olhar para a vida e suas sutilezas com mais carinho, valorizando o que realmente importa.

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