David Premack (1925-2015) educou uma fêmea de chimpanzé, que batizou com o nome de Sarah, a ponto de ela chegar a possuir um vocabulário de 127 palavras, com as quais, em 75-80% dos casos, podia completar ou corrigir frases imperativas, declarativas ou interrogativas. Em alguns casos mais complexos, ela chegou a colocar várias palavras na ordem correta. Esta experiência levou Premack à conclusão de que pelo menos os chimpanzés compartilham com os humanos a capacidade de fracionar uma experiência visual global em coisas isoladas. Uma experiência espantosa de Premack com Sarah jogou por terra a teoria do reflexo condicionado de Pavlov e de Skinner, mostrando que os animais podem dar respostas criativas a questões que lhes são formuladas. Colocando um cartão vermelho sobre um cartão amarelo, o pesquisador perguntou ao símio: “O cartão vermelho está sobre o verde?” Em 65% dos casos, Sarah respondeu corretamente: “não”. Nos 35% dos casos restantes, ela retirou o cartão amarelo, colocou o verde e respondeu “sim”.
Poder-se-ia contestar a validade de tais experiências alegando-se duas razões. Primeira: em estado nativo, estes animais não seriam capazes de alcançar os desempenhos alcançados em laboratório. Segunda: estes animais não conseguem desenvolver, como o ser humano, conceitos através de signos verbais. Rémy Chauvin, escrevendo em 1975, conclui que “O problema das comunicações animais é hoje em dia estudado por um sem-número de métodos e por uma grande quantidade de biólogos. Aqui, o importante é o estudo aprofundado das comunicações entre os macacos no seio da natureza, as quais evocam, muitas vezes de modo desconcertante, as comunicações de tipo humano, e estabelecer o papel da tradição e da inovação nessas sociedades, a fim de compreender um dia talvez melhor o que foi a hominização. É obter dados mais precisos sobre o canto dos pássaros; é analisar os tipos de linguagem utilizados pelas abelhas e pelas formigas” (CHAUVIN, Rémy. A Etologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1977).
Enfim, a faculdade de construir e empregar símbolos não depende da língua, muito embora esta facilite o desenvolvimento de operações simbólicas. Basta lembrar os casos de surdos-mudos-cegos, como os de Laura Brigdman e Hellen Keller, que aprenderam uma linguagem simbólica não verbal. Lembremos também a linguagem matemática, certamente a mais alta expressão de abstração, que não requer, necessariamente, o recurso à fala.
Se admitirmos, como nos leva a crer a etologia, que os animais — pelo menos certos animais — utilizam-se de símbolos in situ e/ou que são capazes de aprender o emprego de símbolos ex situ, o derradeiro limite erguido pela filosofia clássica entre “Homem” e “animal” é rompido.
Parece que é hora de repensar o conceito de cultura. Edgar Morin já propôs uma sociologia geral para estudar comparativamente as sociedades humanas e as sociedades de diversos animais. Cabe, agora, propor uma superetnologia com o mesmo propósito. Este novo campo do conhecimento é, por natureza, transdisciplinar, pois reúne biologia, etologia, etnologia e história.
Os museus guardam rochas, plantas, animais invertebrados e vertebrados não pelo seu valor intrínseco, mas pelo que representam em termos de conhecimento de e para humanos. Da mesma forma, não é estranha a proteção ex situ e in situ de paisagens hipotéticas, ossos e criações materiais dos hominídeos anteriores ao “Homo sapiens”. O que parece difícil de admitir é que orangotangos, gorilas, chimpanzés, bonobos, macacos-prego e cetáceos possam ser criadores de cultura imaterial e material. Este é o grande patrimônio cultural emergente. A Unesco seria capaz de considerar a oficina de ferramentas dos chimpanzés na Costa do Marfim como patrimônio cultural, não dos humanos, mas de um parente próximo seu? Pode-se pensar em museus que protejam as criações culturais dos primatas não-hominídeos, dos cetáceos e de outros?
Já avançamos bastante em reconhecer manifestações culturais humanas. Primeiramente, cultura era apenas a material e monumental. O instituto do tombamento protegia apenas edificações consideradas expressivas: igrejas, castelos, palácios, estátuas, monumentos. Edificações menores eram desconsideradas. A concepção de história, então, era a dos grandes acontecimentos. Com a penetração da história em domínios considerados inferiores, como manifestações sociais populares e de culturas simples, pequenos objetos passaram a ser valorizados: utensílios, instrumentos musicais, vestimentas etc.
Em seguida, as manifestações imateriais também ganharam importância, embora, em museus, elas só possam ser conservadas por meios materiais, como gravação de sons e filmagem de representações.
Mas a questão animal ainda não mereceu atenção. As manifestações protoculturais materiais de várias espécies animais não humanas merecerá, algum dia, figurar em coleções de museus?
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