Arthur Soffiati: Reflexões sobre natureza e cultura (IV)
Arthur Soffiati 31/12/2020 15:01 - Atualizado em 06/01/2021 18:25
Se a sociedade é um fenômeno bastante comum na natureza, e algum tipo de linguagem complexa é reconhecida pelos etólogos como existente entre algumas espécies, ainda estamos no plano de uma possível cultura imaterial que só poderia ser demonstrada por instrumentos. Mas a etologia também descobre manifestações culturais materiais entre os animais, como nos casos dos chimpanzés e golfinhos.
Em 2007, um grupo internacional de pesquisadores, numa floresta da Costa do Marfim, descobriu um conjunto de ferramentas rudimentares de pedra com 4.300 anos de idade, fabricadas por chimpanzés. Sabe-se que os grandes macacos valem-se de pedras para quebrar frutos. No caso da descoberta, porém, trata-se de pedras trabalhadas para funcionarem como ferramentas mais eficientes. Já está bem comprovada a transmissão cultural pelo ensino em grandes macacos como os chimpanzés (Angelo, Cláudio. Grupo descobre “Idade da Pedra” dos chimpanzés. Folha de São Paulo, 13/02/2007).
Até mesmo o simples macaco-prego-galego (“Cebus flavius”) se vale de pedras para quebrar cocos. Em 2011, cientistas surpreenderam esta espécie de primata da América fabricando instrumentos para capturar cupins (Lopes, Reinaldo José. Macaco-prego pesca cupins com galho. Folha de São Paulo, 09/03/2011). Um estudo de 2005 mostrou que os golfinhos nariz-de-garrafa, apesar de carecerem de mãos, conseguem arrancar e colocar esponjas do mar no focinho para sondar o ambiente em busca de alimento. E o mais notável é que esta prática só é passada de mãe para filha (Nogueira, Salvador. Golfinho também tem cultura, diz estudo internacional. Folha de São Paulo, 07/06/2005).
Da mesma forma, cientistas japoneses detectaram manifestações protoculturais entre grupos da espécie “Macaca fuscata”, o que nos leva a crer que a cultura também antecede as sociedades hominídeas (Itani, J. “Paternal care in the wild Japanese monkeys Macaca fuscata”. J. Primatol., 2, 1959, 61; e KAWAMURA, S. “The process of sub-culture propagation among Japanese Macaques”. In: SOUTHWICK (org). Primate Social Behavior. Princeton: Van Nostrand, 1963). O que foi observado durante anos nesses macacos de ilhas japonesas? Eles vivem em grupos, tendo como centro um macaco macho adulto que monopoliza as fêmeas. Outros machos adultos são excluídos do sexo. É comum haverem casos de infidelidade. Se o macho chefe surpreende uma de suas fêmeas com outro, ela logo corre para o lado do seu marido como a simular que foi seduzida. O outro macho então assume posição simbólica de fêmea para que o macho alfa se aproveite dele.
Nada acontece e tudo acaba bem. Nesse núcleo duro dos adultos, não se admitem inovações. Em torno dele, rondam os macacos jovens, e mais afastados ainda estão os macacos rebeldes. Os cientistas observaram que essa espécie se alimenta de tubérculos arrancados da terra e limpados com as mãos. Certo dia, um jovem arrancou o alimento, mas ele caiu no mar. Ele foi até a praia e o recolheu, fazendo duas descobertas: a água limpava o alimento e o temperava com sal. A partir de então, a prática de arrancar o tubérculo e jogá-lo ao mar tornou-se comum aos jovens. Quando um deles se tornou chefe do grupo, o hábito foi imposto a todos.
A observação mais intrigante, contudo, é relatada por Rémy Chavin em seu livro “A etologia” (Rio de Janeiro: Zahar, 1977). Um cientista de nome J. Dembowski concluiu que larvas de insetos tricópteros têm comportamentos diferentes diante de um desafio. Uma delas tomada isoladamente reage de formas diferentes diante da mesma provocação. A larva fabrica seu casulo com areia retirada do fundo de córregos serenos. O cientista causou uma avaria proposital no casulo para verificar o comportamento da larva. Ela retirou areia de “reserva” de uma parte do casulo para fazer o reparo. No mesmo casulo, o cientista fez novo furo. Desta vez, a larva colou o casulo na parede para tapar o furo. Então, ele repetiu a operação. A larva, dessa vez, abandonou o casulo avariado e construiu um novo. O que leva um simples inseto, ainda como larva, em estado de incompletude, a revelar três respostas para o mesmo problema? Trata-se de um mistério para os cientistas. A conclusão a que se chega, porém, é a de que os animais não são tão previsíveis como acreditamos.
Ainda mais um exemplo com uma gata que me escolheu como protetor. Ela era muito inteligente. Costumava caçar aves e levar para mim como se fosse sua contribuição à alimentação do lar. Certa vez, num quarto fechado, notei que alguém tentava abrir a porta. Aguardei. Quando a porta se abriu, a gata entrou. Nunca lhe ensinei a puxar maçanetas para abrir portas. Ela aprendeu sozinha a executar essa operação: saltar até a maçaneta e a puxar para que a porta se abrisse. Parece uma questão de reflexão. A porta está fechada com uma lingueta que se movimenta com o movimento da maçaneta para baixo. Então, a porta se abre. Não sei se todos os gatos chegam a essa conclusão. Corina, no entanto, chegou por conta própria.
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