“MANK” — Após um hiato de seis anos, o aclamado David Fincher está de volta com um projeto ambicioso e de aspecto pessoal. Escrito pelo seu falecido pai, o jornalista Jack Fincher, “Mank” traz o controverso roteirista Herman Mankiewicz (Gary Oldman) como figura central no retrato de uma época marcante de Hollywood, ao mesmo tempo em que conta detalhes do trabalho de Mankiewicz na polêmica criação do roteiro de “Cidadão Kane”, um dos filmes mais aclamados de todos os tempos.
O filme é um projeto antigo. Jack tentou por anos tocar o longa, mas nunca conseguiu um estúdio que o bancasse. Por sua vez, a Netflix, desde seu surgimento, aposta em alguns projetos considerados arriscados, como por exemplo a finalização do filme inacabado de Orson Welles, “O outro lado do vento”. E foi na gigante do streaming, com a qual David já tem uma parceria consolidada, que ele encontrou o parceiro ideal para levar às telas o projeto do pai.
Na trama, o experiente e egocêntrico Mankieciwz é contratado para escrever o primeiro filme de Orson Welles, um jovem gênio do teatro que chega a Hollywood com carta branca para realizar seu primeiro longa. Após sofrer um acidente de carro que o deixa acamado, Mankiewicz é isolado em um rancho junto à sua assistente para escrever o longa e se manter longe dos seus vícios.
O filme trabalha duas linhas de histórias de forma não linear, usando cabeçalhos de roteiro para dividir as sequências. Um artifício previsível que traz um certo charme às transições.
As linhas trabalham o momento presente, em que o protagonista está acamado, e suas relações com a sua família, com sua assistente e com Welles. E a segunda, que acontece anteriormente ao acidente, busca apresentar Mankieciwz enquanto ele lida com seus vícios e transita nos maiores estúdios da época, mostrando também sua relação com o milionário William Randolph Hearst, que serviu de base para a construção do protagonista do seu roteiro.
Tecnicamente, o filme impressiona. A recriação daquela Hollywood permite uma imersão do espectador, e Fincher busca resgatar elementos do cinema da época, principalmente de “Cidadão Kane”. Desde o uso do preto e branco, passando pela utilização do deep focus — técnica que se destacou no longa de Welles —, até mesmo na inserção de detalhes que buscam emular filmes da época, como sujeiras na película.
O filme também faz uso do som em mono, criando uma camada sonora que realmente passa a sensação de a obra ter sido gravada no mesmo período da trama.
O grande problema de “Mank” reside em seu roteiro inchado. Repleto de personagens e muito focado nos diálogos, o roteiro de Jack carece de ritmo, de desenvolvimento de personagens e principalmente de carisma. É muito difícil o espectador se identificar com qualquer uma daquelas figuras. O próprio Mankieciwz é um personagem insuportável — não digo isso como uma qualidade, pois, dependendo da proposta, poderia ser — e que não passa por um arco dramático satisfatório.
Esse problema de personagens acaba afetando o trabalho do elenco. Mesmo com boas atuações, o roteiro termina por sabotar o filme com personagens desinteressantes.
Destaque para o excelente Gary Oldman e para Amanda Seyfried. Alguns dos melhores momentos do filme acontecem com os dois em cena, e a química entre eles funciona.
Mas, é impossível falar de Mank, sem tocar na grande polêmica retratada no longa. Mankieciwz foi contratado por Welles para escrever o roteiro e, por contrato, receberia um valor pelo trabalho. E não receberia os créditos pelo texto do filme, que seria creditado integralmente para Welles. Essa era uma prática muito comum na época.
Após terminada sua primeira versão, Mankieciwz bateu o pé e passou a exigir de Welles que seu nome fosse creditado. Essa polêmica durou anos. Existem pessoas que creditam a qualidade de Kane para o roteirista, alegando que Welles teria usado o trabalho alheio para fazer sua fama. O próprio filme dá a entender isso.
Já ficou provado que o roteiro escrito por Mankieciwz foi a primeira versão, que sofreu mudanças consideráveis feitas por Welles, sendo assim justo creditar os dois como roteiristas.
Para um filme que aborda essa questão, trazer Jack Fincher como único roteirista creditado, quando é sabido que o roteiro passou por tratamentos seguintes nas mãos de outros roteiristas, só prova a hipocrisia de Fincher. Acredito que, na intenção de homenagear o pai, ele acaba indo contra um elemento importante do filme, uma questão delicada e difícil de compreender.
“Mank” é um filme ambicioso, que aborda as polêmicas e os bastidores não só de um clássico antológico, mas principalmente das questões sociais e políticas da era de ouro de Hollywood. Uma pena que o filme padeça de um roteiro tão irregular e sem carisma, fazendo da obra um filme frio e inconsistente.