Arthur Soffiati: Reflexões sobre natureza e cultura (II)
Arthur Soffiati 18/12/2020 14:15 - Atualizado em 18/12/2020 15:01
A natureza é constituída por tudo contido no Universo e não criado pela humanidade: o próprio Universo, as galáxias, os sistemas planetários, a Terra, a vida, os hominídeos e o próprio “Homo sapiens”, a espécie da qual fazemos parte. Cultura é o que as sociedades humanas criam: as concepções de mundo — religiosas ou não —, a arquitetura, a escultura, a pintura, o desenho, a escrita, os materiais sobre os quais se escreve, os livros, a ciência, as máquinas, os utensílios de um modo geral, a alimentação, as formas de reprodução, a vida cotidiana, o lixo, as armas e um conjunto infinito do que a natureza não produz diretamente.
Mas, cabe aqui uma observação. A etologia, ciência que estuda o comportamento dos animais, vem descobrindo que outros animais além de espécies do gênero “Homo” são capazes de aprender por conta própria ou ser ensinados por humanos. Além do mais, várias espécies formam sociedades e se comunicam. Mais ainda: algumas são capazes de inventar, por conta própria, objetos materiais para lidar com a natureza. Em forma de fluxograma, podemos afirmar que a natureza criou o cérebro que criou a cultura que retroage sobre a natureza. Os sistemas lineares de causa e consequência não mais dão conta de explicar o mundo. O conhecimento mostrou que a realidade só pode ser compreendida, sempre de forma incompleta, por sistemas circulares.
Assim, a natureza criou tudo: as espécies que têm a vida determinada por padrões inatos e a vida que conta com alguma margem de liberdade para criar algum comportamento além dos inatos, sociedade, comunicação e objetos. Se a natureza criou os animais que são capazes de criar, logo, indiretamente, a natureza criou o que foi criado pelos animais que criou. Podemos dizer que a mais simples forma de vida tem seu comportamento quase totalmente determinado pela natureza, mas que lhe resta um grau definido, por menor que seja, para que ela aprenda.
Tomemos o caso do vírus Sars-cov-2, responsável pela atual pandemia. Um vírus, que nem ser vivo é, aprende com rapidez como parasitar o organismo-alvo. O historiador Yuval Harari, em recente livro, escreveu que o vírus não pode se comunicar com outro para saber como parasitar o ser humano, enquanto este pode se comunicar com outro da sua espécie para saber como combatê-lo. Tolice. O vírus é muito mais eficiente que o humano. Ela saltou de algum animal para o homem e se adaptou a ele sem consultar nenhum professor. Viajou pelo mundo e se adaptou às mais variadas situações. Chegou mesmo a contaminar animais passando por mutações para isso, como é o caso do vison. Se ele entrar num organismo já imunizado ou num organismo infenso a ele, existe logo um reconhecimento automático.
Mas, comecemos pelos organismos reconhecidos como os mais simples: as bactérias. Elas aprendem sem consciência de que aprendem. Elas estariam no ângulo inferior quanto à capacidade de aprender. A própria mutação adaptativa não deixa de ser uma forma de aprendizado. Não cheguemos, contudo, a concluir que bactérias, protozoários, fungos e animais com programas instintuais deterministas produzem cultura.
Num polo, estão os seres vivos não-humanos, que vão aumentando sua capacidade de aprender à medida em que se tornam mais complexos. No outro polo, está o homem, que não deixa de ser animal. Quanto mais simples o vivo, maior a programação instintual e menor a capacidade de aprendizagem. Quanto mais complexo o vivo, menor a programação instintual e maior a capacidade de aprendizagem. Tanto no mais simples quanto no mais complexo, instinto e capacidade de aprender não desaparecem.
À medida em que se sobe a linha da complexidade, a capacidade de aprendizado, ao lado do comportamento inato, favorece a produção de cultura. Ela aumenta até chegar nos hominídeos e, sobretudo, no “Homo sapiens”, detentor do cérebro mais complexo da natureza na Terra até o momento. Com ele, a cultura alcança seu grau máximo. Mas, observemos que, nos organismos mais simples, o comportamento inato prevalece de forma avassaladora sem, contudo, eliminar por completo a capacidade de aprendizado. Ela pode ser mínima diante do instinto dominante, mas não desaparece.
Quanto mais se avança na complexidade biológica, o equipamento instintual vai se reduzindo, enquanto a capacidade de aprendizado vai aumentando até culminar no “Homo sapiens”. Podemos, pois, concluir que o humano não monopoliza a capacidade de produzir cultura, como um dom divino. Ele se encontra no meio de um grupo de animais que desenvolvem eventual ou constantemente algo fora do seu corpo para viver. Como escreveu Edgar Morin, o homem está na ponta de um cabo que o liga ao continente animal.
Mas, afinal, natureza é cultura? A rigor, não. Ela cria espécies que produzem cultura, e todas elas aprendem algo sobre a natureza que as criou. Em graus distintos, cada espécie desenvolve uma ciência sobre a natureza. A ciência do “Homo sapiens” é consciente. Na medida em que estuda a natureza e traduz esse conhecimento em livros científicos, filosofia, desenho, pintura, escultura, fotografia, cinema etc., ele a transforma em cultura. Assim, a natureza ganha os arquivos, os museus e as bibliotecas.

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