Em 2020, Clarice Lispector completaria 100 anos. Conhecida por suas obras profundas e cheias de discursos da alma, assim como sua personalidade misteriosa, a autora marcou o início de uma literatura baseada em sensações e sentimentos, levando seus leitores a uma viagem para o mergulho psicológico nos personagens. Clarice ainda é uma das maiores escritoras brasileiras. Seu trabalho inclui romances, contos, crônicas e livros infantis.
Quem foi Clarice Lispector? — Haia Lispector nasceu em em Tchetchelnik, na Ucrânia, no dia 10 de dezembro de 1920. Caçula de três irmãs, recebeu esse nome dos seus pais, Mania e Pinkhas Lispector, por conta do seu significado: “vida”. Mas, dois anos mais tarde, fugindo da violência e do antissemitismo, durante a Guerra Civil Russa, a família partiu o Brasil. mais precisamente para Maceió/AL. Na cidade, eles adaptaram seus nomes para o português. Foi assim que Haia passou a se chamar Clarice.
Em 1925, a família se mudou para o Recife/PE, para tentar melhorar a vida que levavam. Porém, em 1930, Clarice perdeu sua mãe, que sofria de paralisia. Nessa época, já estudando em um colégio Hebreu Iídiche Brasileiro e dominando alguns idiomas, Clarice apostou na carreira de escritora. Foi quando escreveu sua primeira peça de teatro, “Pobre Menina Rica”, e tentou publicar alguns textos curtos na imprensa recifense — sem sucesso. Os editores consideravam que seus escritos tinham poucos fatos e muita sensação.
Aos 15 anos, Clarice se mudou para a então capital federal, o Rio de Janeiro. Três anos mais tarde, começou a trabalhar como professora particular de português e matemática, até ingressar, em 1939, na Faculdade Nacional de Direito e se dividir entre os trabalhos como secretária em um escritório de advocacia e tradutora de textos científicos em um laboratório.
Em 1940, no mesmo ano da morte de seu pai, Clarice começou, sem querer, uma carreira no jornalismo. Na falta de vagas no setor de tradução do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), foi designada como repórter na Agência Nacional. Dois anos mais tarde, em 1942, virou repórter no jornal A Noite.
Foi durante a faculdade de direito que Clarice conheceu Maury Gurgel Valente, com quem se casou, no ano de 1943, e começou uma vida itinerante, devido ao trabalho de diplomata do marido. Nesse mesmo ano, a escritora se naturalizou brasileira e publicou seu primeiro livro, “Perto do Coração Selvagem”, indicado como o romance do ano pela Fundação Graça Aranha. Um pouco depois, embarcaria com seu parceiro para Nápoles, na Itália, onde ele assumiria seu primeiro posto no exterior.
As experiências no exterior estavam apenas começando e renderiam alguns livros que ela promoveu em suas curtas passagens pelo Brasil. Entre eles, “O Lustre” e “Cidade Sitiada”, seu primeiro livro de conto escrito enquanto morava na Suíça, em 1964. No país, ela se sentia entediada com a vida tranquila que levava. Foi lá também que deu à luz seu primeiro filho, Pedro.
Em 1959, Clarice separou-se de Maury Gurgel, pouco depois de terem seu segundo filho, Paulo, que nascera em Washington (EUA). Ao voltar para o Brasil, a autora se dedicou ao trabalho em diversas colunas femininas de jornais cariocas, assinando, sempre, seus trabalhos com pseudônimos. Uma dessas colunas era a “Feira de Utilidades”, no jornal carioca Correio da Manhã, em que ela assinava como Helen Palmer.
Nos anos seguintes, morando ainda no Rio de Janeiro, publicou vários livros aclamados pela crítica, além de contos e crônicas em jornais locais. Até que, em 1967, dedicou-se a um novo perfil de escrita que a acompanharia até o final de sua vida. Nessa fase, ela lançou seu primeiro livro infantil, “O Mistério do Coelho Pensante”, eleito, pela Campanha Nacional da Criança o melhor livro infantil do ano.
O engajamento político tornou-se pauta na vida da autora em 1968, após se manifestar sobre a morte do estudante secundarista Edson Luís durante uma manifestação. No dia 2 de junho, juntou-se a outros 300 intelectuais para cobrar uma postura democrática do governo do Rio de Janeiro. E, mais tarde, em 26 de junho, juntou-se a outros intelectuais e artistas na linha de frente na Passeata dos Cem Mil contra a ditadura militar.
Em anos seguintes, Clarice se dedicou à tradução de autores consagrados, como Júlio Verne, Agatha Christie e Edgar Allan Poe. Em 1976, recebeu um prêmio da Fundação Cultural do Distrito Federal pelo conjunto da sua obra.
Dona de uma personalidade enigmática, Clarice dizia que, inclusive era um mistério para si mesma e não escrevia para agradar ninguém. Entre os feitos controversos da escritora, está a participação no 1º Congresso Mundial de Bruxaria, em Bogotá, na Colômbia, para falar sobre a relação entre literatura e magia.
Em 1977, publicou seu último romance, “A Hora da Estrela”, e a coleção de crônicas “Para Não Esquecer”. Um dia antes do seu aniversário, em 9 de dezembro, Clarice faleceu. Nos anos seguintes, algumas últimas obras seriam publicadas, entre elas “Um Sopro de Vida” e a coletânea de contos “A Bela e a Fera”.
Perto do coração de Clarice — Desde o início, a escritora causou controvérsia na cena literária. Logo na publicação do seu primeiro livro, a crítica percebeu peculiaridades em sua forma de abordar os sentimentos e em suas temáticas, que narravam, em grande parte, as complicadas relações amorosas. A crítica se dividiu, e Clarice foi aclamada apenas por uma parte dos especialistas.
Álvaro Lins, famoso crítico da época, a comparou a Virgina Woolf e a James Joyce, dois autores que Clarice afirmou nunca ter lido. Quem ela disse que leu? A lista inclui Dostoiévski, Eça de Queiroz, Julien Green e os brasileiros Machado de Assis, Graciliano Ramos e Rachel de Queiroz.
A grande inovação que Clarice trouxe para a literatura brasileira foi a presença do inconsciente. Suas obras são intimistas ao falarem sobre questionamentos, sentimentos e sensações de personagens com vidas extremamente comuns.
Além disso, esses mesmos personagens, com vidas tão ordinárias, passam por experiências internas que os levam ao extraordinário, marcam momentos simbólicos na narrativa dos personagens, quebrando a harmonia da narrativa assim como a da vida dessas pessoas.
Algumas grandes obras:
“Perto do Coração Selvagem” (1943) — Como uma versão interiorizada da adolescência, a narrativa conta a história de Joana, que perdera a mãe muito cedo e fora criada pelo pai, até que ele também morreu. Ela, então, foi enviada por sua tia a um internato, onde se apaixonou por seu professor, alguns anos mais velho. A vida de Joana dará espaço para uma narrativa do universo feminino em busca de um sentido para sua existência. O livro não segue uma ordem cronológica e é considerado um olhar atento para o processo de autoconhecimento.
“Laços de Família” (1960) — O livro reúne 13 contos da autora, entre eles alguns que marcaram a carreira de Clarice, como “Amor”, “Uma Galinha” e “O Crime do Professor de Matemática”. Em muitos momentos, o livro parece refletir experiências pessoais da autora e gira em torno das relações familiares, como diz o título, quando as personagens tentam equilibrar suas vidas ao se depararem com um interior selvagem. Recebeu o Prêmio Jabuti de Literatura em 1961.
“A Paixão Segundo G.H.” (1964) — Marcado pela construção da linguagem como fator principal da narrativa, o livro narra o encontro entre uma mulher, identificada como G.H., com uma barata, presa na porta do seu guarda-roupa. A narrativa se desenrola a partir do fluxo de consciência da própria personagem, que a faz entrar em um labirinto dentro de si e se questionar sobre a existência.
“Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres” (1969) — Na trama, a personagem Loreley, conhecida como Lóri pelos amigos, muda-se de uma cidade interiorana para trabalhar como professora no Rio de Janeiro. Por acaso, conhece o professor universitário de Filosofia, Ulisses, com quem começa uma paixão fora dos padrões. Por sugestão do acadêmico, decidem passar por um processo de aprendizagem em que o objetivo é amadurecerem a relação até o momento certo para fazer amor. Por sua ousadia temática e linguística, a obra recebeu o prêmio Golfinho de Ouro, do Museu da Imagem e do Som (RJ).
“Hora da Estrela” (1977) — Narrado pelo personagem Rodrigo S.M., o livro conta a história de Macabéa, uma ingênua migrante alagoana que tenta ganhar a vida na cidade grande. A história aborda a crueldade em uma sociedade competitiva, desigual e cheia de deslealdade por meio de uma personagem que pouco sabe o que dizer ou tem a oferecer. Ao mesmo tempo, o narrador discute o próprio ato de criar uma obra e como registrar aquilo que é efêmero. Foi o último livro publicado pela autora em vida.