O SOM DO SILÊNCIO — Para todo artista, seu corpo é essencialmente seu instrumento. Mesmo no caso daqueles que fazem uso de fato de um instrumento, ele acaba se tornando uma extensão do corpo físico. Com os músicos não é diferente. E, se a ideia de perder a audição é assustadora para qualquer pessoa, imagina para quem precisa dela para captar o mundo, se expressar, e principalmente como sua forma de sustento.
Essa é a premissa básica de “O som do silêncio”, a história de um músico que vive uma vida de excessos e vê todo o seu estilo de vida e seus sonhos ruírem quando perde um sentido essencial para realização da sua atividade.
Ruben (Riz Ahmed) é um baterista que faz um duo musical com sua namorada, Lou (Olivia Cooke), e ambos levam uma vida itinerante, seguindo de cidade em cidade fazendo shows e divulgando seu trabalho. Quando ele rapidamente começa a perder sua audição, sua vida sofre uma mudança radical, e agora ele precisa aprender a viver com sua nova condição em uma comunidade para surdos, enquanto tenta recuperar o antigo estilo de vida.
Para um filme que traz a música em seu título e em toda sua divulgação, curiosamente, é o silêncio o elemento principal do longa. O silêncio é um elemento importante da música (nem todo mundo se atenta para esse fato), mas aqui esse elemento é trabalhado na forma como o protagonista se relaciona com o mundo.
O diretor e roteirista Darius Marder (em seu segundo longa) trabalha o som de forma subjetiva, criando uma experiência angustiante e criativa, que busca fazer com que o espectador sinta o que Ruben está passando. Por isso, o uso de fones de ouvido para assistir ao filme permite que essa sensação seja amplificada, pois nos permite sentir um pouco do que o protagonista está passando.
Esse cuidado com a estética sonora é realmente primordial para o funcionamento do longa, fazendo dele muito mais do que um drama muito bem realizado, mas nos fazendo vivenciar, mesmo que por instantes, um pouco das sensações e do desespero do personagem.
O texto de Marder é muito bem-sucedido em abordar principalmente a relação do casal, revelando informações importantes em momentos chave, sempre com sutileza, desenvolvendo de forma gradativa os personagens, revelando muito do estilo de vida que eles viviam e justificando o desejo do protagonista em recuperar tudo o que perdeu.
A personalidade explosiva de Ruben não só combina com o personagem, como contrasta com o estilo do local. Neste segundo ato, o roteiro dá algumas deixas que poderiam levar o filme para caminhos perigosos, que enfraqueceriam a história, mas Marder entende muito bem a história que ele quer contar e nunca deixa o filme se tornar um drama banal que pega os caminhos mais fáceis.
Esses extremos narrativos funcionam muito bem, como a mudança do estilo de vida agitado e desapegado do baterista, que tem Lou como sua única constância (não por acaso, eles não têm nem uma banda, são um duo, elemento que ressalta a dependência entre eles), para uma comunidade voltada a surdos e ex-viciados, um ambiente controlado, de fortes raízes, mas de uma fragilidade natural que depende de uma harmonia social para se manter; além, é claro, de separar o casal.
Outra relação muito importante dentro do longa é a de Ruben com Joe (Paul Raci), o líder e mentor da comunidade, responsável pela manutenção do local e por guiar o protagonista dentro da sua nova realidade. Um personagem complexo, que passou por muita coisa e age com dureza, pois entende as dificuldades do seu papel, ao mesmo tempo em que demonstra um carinho paternal pelos membros do grupo.
Impressiona também é a qualidade das atuações no filme, principalmente do trio principal. São atuações poderosas, repletas de sutilezas. Pequenas reações, como um suspiro em um determinado momento ou um simples coçar no braço (muito significativo), trazem um tom de realidade visceral para o filme.
Curioso como a história do ator Paul Raci (Goliath) se confunde com a do seu personagem e com a de Ruben. Ele é filho de pais surdos. Logo, de fato, é fluente na linguagem de sinais. Ele também é veterano da guerra do Vietnã (assim como seu personagem) e é músico, experiências que intensificam a sua soberba atuação. A cena da principal conversa dele com Ruben (vocês vão identificar) é uma das melhores do ano.
Olivia Cooke (“Jogador número 1”) tem até poucas cenas, mas sua personagem é primordial para o desenvolvimento da trama, e seus poucos momentos são realmente tocantes. Uma atuação cheia de sutilezas, em que a atriz consegue contar muito sem fazer uso dos diálogos.
Riz Ahmed (“The night of”) tem uma das melhores atuações do ano. O jeito explosivo, somado ao desespero e à fragilidade de Ruben, ganha força na atuação intensa de Ahmed. Em pelo menos três cenas, tais fatores fazem com que seu trabalho aqui seja um dos meus favoritos para a temporada de premiações (apesar de eu achar que o filme será ignorado).
“O som do silêncio” é uma experiência cinematográfica angustiante, com uma abordagem naturalista, repleta de sutilezas, que traz uma relação única com o som, onde o silêncio incomoda, alivia e nos permite ter sensações que nos aproximam do protagonista e, a grosso modo, de pessoas nessa condição. Uma ousadia com complexidade que só grandes filmes conseguem proporcionar.