Afrânio Sobral: Rio Guaxindiba
Afrânio Sobral - Atualizado em 15/12/2020 16:40
A Norma Crud
Juvenal foi muitas vezes a Guaxindiba e ao sertão de São Francisco de Itabapoana, antigamente conhecido como sertão de São João da Barra. Foram tantas vezes que até perdeu a conta. Ele continua e continuará indo enquanto tiver forças. São muitas as recordações desse lugar em sua memória.
Faz tempo que lá esteve com a atenção voltada para seus estudos sobre manguezais. Na primeira, ele confundiu os rios. Então achou que o mais largo, o mais caudaloso, o mais arborizado era o rio Guaxindiba. Ele desemboca no mar e recebe dois afluentes pela margem esquerda. Errou. O conjunto de rios o deixou confuso por muito tempo. Demorou para que ele desvendasse o mistério ou a confusão que as obras humanas fizeram por ali.
Ainda afundando na lama negra do enigma, Juvenal se lembra que esteve lá fazendo uma filmagem para um documentário que nunca ficou pronto. Quando ele revê as imagens registradas no DVD, nota que certos lugares não existem mais. Noutra vez, Juvenal levou até lá a Drª. Dolores, pesquisadora do Rio de Janeiro que estava fazendo um levantamento dos manguezais do Estado. Ela tinha uma lista de lugares a serem registrados e recorreu a Juvenal como ponto de referência, quase um guia, para aquele levantamento. Foi Juvenal quem lhe falou da primeira vez sobre aquele manguezal.
Dolores era famosa por sua competência. Os dois formariam uma dupla no futuro para estudar outras fenômenos estranhos que estavam acontecendo em manguezais. Ela então já trabalhava por conta própria. Ele redigia um volumoso trabalho sobre o assunto. Dolores caiu do céu para ele. Embora já idosa para entrar na lama, Dolores era de um detalhismo compulsivo. Juvenal passou a ser as pernas dela sempre que trabalhavam em conjunto. Ele gostou daquela mulher, que guardava os traços da sua beleza quando jovem. Ela era bela aos olhos de Juvenal. Dolores mantinha sempre uma distância respeitosa e não dava abertura para qualquer galanteio, por menor que fosse.
Com ela, Juvenal foi examinar um trecho do manguezal do rio Guaxindiba. Ele já sabia qual era o rio. Cheio de meandros, ele tinha as margens ornadas, no seu trecho final, por plantas de mangue, que formavam uma floresta-galeria. Os dois ainda conheceriam essa mata por dentro, navegando de barco.
O trecho escolhido por ela fica acima da rodovia estadual RJ 196. Logo Dolores saiu à procura do ponto em que as águas do diminuto rio passavam por baixo da estrada. Aquele filete de água fluía por um tubo de noventa centímetros de um lado para outro. Depois de examinar detidamente aquela intervenção humana, Dolores concluiu que as marés altas esbarravam no obstáculo da estrada e não atingiam a boca do cano para chegar ao outro lado.
Então, ela chamou a atenção de Juvenal para a grande quantidade de exemplares de mangue branco, ainda jovens, crescendo lado a lado, com caules retos. Sempre atenta, Dolores perguntou a Juvenal se ele sabia por que as plantas se comportavam assim. Ele não sabia sequer qual era o comportamento normal delas. Dolores explicou que o mangue branco cresce de forma meio tortuosa e que ali ele crescia reto porque muitas sementes caíam no chão e não eram carregadas pelas marés, como é normal. Então, elas germinavam ali mesmo onde caiam e cresciam retilíneas em busca do sol. Dolores sabia tudo, pensava Juvenal. Sua admiração por Dolores aumentava a cada detalhe que ela lhe explicava.
Uma vez, durante um almoço, Dolores bebeu um pouco e lhe disse que não tinha mais coragem para muita coisa que fizera na juventude. A imaginação de Juvenal se descontrolou. Ela devia ter sido linda. Seu rosto e seus olhos eram a prova disso. Mas Dolores não se permitia fraquezas e logo se recompunha e se impunha.
No dia em que ambos foram visitar o manguezal de Guaxindiba, ela pediu a Juvenal para entrar naquele bosque. O chão parecia seco, mas o cheiro era insuportável. Em determinado ponto, ele encontrou várias cobras pequenas ao sol e gritou para ela: “Aqui está cheio de cobra”. Ela, com a frieza de um cientista, ordenou: “Descreve”. Juvenal cumpriu a ordem como podia, e ela disse: “Pode continuar tranquilo, porque são cobras mansas e vão fugir quando você chegar perto”. Dito e feito. As cobras sumiram no mato. Ele continuou até encontrar muitos galhos caídos. Foi necessário pisar num deles para seguir em frente. Primeiro, Juvenal firmou o pé num para sentir sua consistência. Deu para passar, mas, no seguinte, o galho quebrou, e ele afundou o corpo todo naquela lama podre. Salvou a câmara dela levantando os braços. Saiu imundo.
Só havia a praia para um banho. Ele mergulhou com prazer no mar. A lama era composta de partículas finas que ficaram entranhadas nas ranhuras da sua pele, nos dedos dos pés, nas suas unhas. Mais tarde, ele aprenderá que essa lama está presente em quase todos os manguezais. É fabricada por ele. Muitas e muitas vezes, ele passou uma semana esfregando os sulcos da pele para tirar o pretume.
Dolores gostou muito daquele manguezal não por sua beleza, mas pelo comportamento anômalo dele. Tanto que voltou algumas vezes na companhia de Juvenal. Num dos retornos, ele já conhecia razoavelmente a geografia daquele sistema. O rio sempre foi pequeno. Vem da zona serrana, atravessa tabuleiros, recebe muitos afluentes e desembocava no mar. “Não desemboca mais?”, perguntou Dolores. “Veja o que o engenheiro Camilo de Menezes escreveu sobre o rio em 1940”, mostrei-lhe uma folha de papel: “O Rio Guaxindiba é o único afluente do oceano entre a foz do Paraíba e a ponta de Manguinhos. Sua barra, ao contrário das situadas ao sul de Atafona, é muito estável e só se fecha quando cessa totalmente a descarga do rio; logo às primeiras chuvas pode-se abri-la facilmente.”
“Então, o que é esse rio largo em que outro córrego desemboca nele?” “É o canal Engenheiro Antonio Resende, aberto pelo Departamento Nacional de Obras e Saneamento na década de 70. O riacho é o canal Guaxindiba, também aberto pelo órgão como rio paralelo ao Guaxindiba. Hoje, ambos desembocam no canal, que roubou a foz do rio original”. “Mais uma obra desastrosa do DNOS”, lamentou ela. Já havíamos adquirido intimidade. Inclusive, escrevemos um trabalho acadêmico juntos para um simpósio. Na verdade, ela escreveu e, gentilmente, colocou meu nome como coautor.
Dolores tinha compulsão pelo saber. Certa vez, ela e Juvenal subiram o Guaxindiba de barco da sua foz, no Engenheiro Antonio Resende, até perto da estrada. Ela fotografou a mata-galeria. Na volta, com a noite chegando, ela ouviu o cricri de uma borboleta. Vasculhou o espaço com seus olhos curiosos e não conseguiu encontrá-la. Era um exemplar de Parides ascanius, a popular borboleta da praia, segundo me explicou. Já em Guaxindiba, quase noite, ele insistiu em voltar ao ponto em que ouviu a borboleta. O barqueiro ponderou que era tarde. Ela insistiu e ofereceu mais dinheiro ao condutor. Ele retornou ao local da provável borboleta. Já era noite. Ela voltou derrotada.
Juvenal percorreu o sertão de São Francisco muitas vezes. Geralmente, sozinho. Chegava lá numa velha Marajó, descia e caminhava muito. Ele gostava de caminhar com uma câmera fotográfica e um gravador. Registrava paisagens e gravava suas impressões. Ao chegar em casa, transcrevia seus registros e mandava revelar as fotos. Muitas vezes, encaminhou denúncias ao Ministério Público. O antigo sertão de São João da Barra havia sido tão desfigurado por ações humanas que se transformou num verdadeiro enigma. Com sofreguidão, Juvenal tentou decifrá-lo.
Moradores de Guaxindiba chamavam um ponto dele de Ilha. Por que Ilha, se não havia ilha nenhuma? Os moradores não sabiam explicar. Aprenderam a chamar o local de Ilha porque seus pais e os pais de seus pais lhe ensinaram que se chamava Ilha. Era Ilha e pronto. Examinando um mapa antigo, Juvenal percebeu que, antes da abertura do canal Engenheiro Antonio Rezende, o Guaxindiba recebia, pela margem direita, um afluente paralelo à praia, provavelmente com leito formado num cordão de restinga. Com a abertura do grande canal, uma porção de terra ficou entre o Guaxindiba, seu afluente e o canal, formando uma ilha.
Juvenal riscou sobre uma planta do IBGE toda a bacia do Guaxindiba. Ele parecia uma árvore frondosa cuja copa foi moldada pelo vento. Uma bela árvore, hoje tão mutilada. Dessa forma, ele foi conhecendo os manguezais. Melhor dizendo: o que sobrara deles. Mesmo assim, ele passou a amar aquele ambiente meio água meio terra, aquelas plantas estranhas que resistiam à salinidade. O manguezal lhe parecia fêmea, tal o prazer sensual que lhe provocava.
Algumas vezes mais, Juvenal acompanhou Dolores. Compulsiva, ela ouviu um canto que atribuiu ao sábia-da-praia, na Barra do Açu. Sem aparelhagem para atrair a ave, fotografá-la e ouvir seu canto, ela insistiu para retornar no dia seguinte. Juvenal fazia-lhe as vontades. Certa vez, quis revisitar a Região dos Lagos em busca de dois grande exemplares de mangue-de-botão em plena restinga. Não encontrou mais nada e insistiu em buscar a planta no Sul Fluminense. Juvenal entrou na lama em seu lugar como tantas vezes. Numa ocasião, ele afundou na lama poluída do rio Macaé com a câmara de Dolores para fotografar uma siribeira. Com esse mergulho, que só protegeu a máquina, ele contraiu estafilococos.
Os laços de amizade amorosa que se estabeleceram entre Dolores e Juvenal mantiveram-se por muitos anos. Mesmo à distância, eles se correspondiam por e-mails. Ele fez silêncio por longo tempo, apesar das mensagens de Juvenal. Demorou a responder que estivera internada em coma por um mês. Logo depois, uma amiga dela escreve a Juvenal dizendo que ela havia morrido e que ele devia agradecer aos céus por Dolores ter permitido que entrasse em sua vida.

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