Assisti ao meu primeiro filme numa sala de cinema aos 16 anos. Coisa tão prosaica hoje, naquele tempo era a realização de um pequeno anseio que para mim se tornou permanente. O filme foi “Romeu e Julieta”, de Franco Zeffirelli, o mestre das belas imagens, das cores esplêndidas, dos cenários realistas. Avalio assim esse meu primeiro filme, pois há duas formas de avaliar uma realização artística: uma com os critérios avaliativos que lhe são próprios, construídos em convenientes campos teóricos; outra com o coração, com o sangue palpitando nas artérias.
Na minha formação de cinéfilo, ia ao cinema ver “Tubarão” (1975), de Steven Spielberg, com o mesmo entusiasmo e interesse com que ia ver “Gritos e Sussurros” (1972), de Ingmar Bergman, exemplos de filmes com plateias e gostos auto-excludentes.
Minha vida no meu Recife natal somam apenas 17 anos, do nascimento aos quatro anos de idade e depois dos 14 aos 27, e são de lá os grandes palcos desta iniciação, a uma só vez de sonho e de aprendizagem. Eram os anos 1970-1980, décadas de muita efervescência cultural, de muitas e boas expectativas políticas, mesmo em face de uma ditadura.
Havia cerca de uma dúzia de salas no Recife do meu tempo, e eu, claro, conhecia todas, de tantos filmes vistos em cada uma. Havia dias que eu procurava um pra ver e já havia visto todos. A desolação assim se resolvia: escolhia um e ia vê-lo novamente.
As salas assim se dividiam, segundo a sua lógica. O São Luiz e o Veneza eram as mais sofisticadas, localizadas no centro do Recife. Era lá que as grandes produções estreavam. Havia também o Moderno, para onde iam os de maior bilheteria e apelo popular. Depois que esses filmes esgotavam um tanto as plateias, eles rumavam para as salas dos bairros, o Boa Vista e o Eldorado, respectivamente, nos bairros de Paissandu e Afogados, onde os ingressos caiam de preço. Era a última chance de quem não o tinha visto ainda. Havia ainda um outro, ainda mais distante do centro, o cine Brasil, por sorte, perto de onde eu morava. O custo do ingresso caía ainda mais. Um belo dia, vejo minha mãe retornando para casa com as amigas-vizinhas, depois terem assistido a “Dona Flor e seus dois maridos” (1976), de Bruno Barreto, no cine Brasil, todas entusiasmadíssimas!
Outras salas, de outros exibidores, eram esplêndidas e localizadas no centro ou em bairros próximos. Eram o Trianon e o Art Palácio, com grandes filmes de arte, além dos requintados Ritz e o Astor, amplos, telão e som dolby-stereo estonteantes. Lá assisti, não sei se num ou noutro, que eram gêmeos idênticos, a “E o vento levou” e “2001, uma odisseia no espaço”.
Naquele tempo, o acesso à sala era permanente. Podíamos chegar na metade do filme e esperar a próxima sessão sentados para completar a sessão. Isso é impensável hoje, embora seja uma forma inteiramente possível de se assistir a um filme. Ah, e as poltronas não eram marcadas no ingresso... Um ou outro filme assistíamos até a duas sessões, de tão bom que era ou o filme, ou a companhia dos amigos, ou o aconchego da salinha escura com ar refrigerado.
Por fim, tínhamos o cine da AIP (Associação de Imprensa de Pernambuco). Lá os filmes eram, invariavelmente, “cabeça”, tanto quanto os exibidos no Teatro do Parque, com programação especial. Foi lá que tomei conhecimento da cinematografia da década de 1960, de Glauber Rocha, de Bergman, de Rosselini, de Fellini, diretores que nos entusiasmavam pela complexidade, que nos deixavam bestificados com a dificuldade de sua deglutição simbólica.
O cinema era a expressão maior da diversão também em família, com gente de todas as classes e idades. Lembremos que não havia ainda o filme em casa sob demanda, pois nem sequer o videocassete doméstico havia sido inventado. Muitas estreias eram insuportavelmente lotadas, a ponto de precisarmos chegar com uma hora de antecedência para comprar o ingresso, pois não era possível adquiri-lo com antecedência. Ingresso na mão, a luta encarniçada prosseguia, aguardando numa fila o acesso à sala e à poltrona.
Também diferente de hoje, a plateia reagia livremente ao filme. Dependendo do filme, a plateia gritava, aplaudia, xingava. Exibição finda, tinha início o sofrimento para nos locomovermos para fora, diante da inumerável massa de gente, a que saia e a que entrava para sessão seguinte. Lá fora, na rua, até o trânsito era perturbado.
São muitos os filmes poetizando a magia do cinema, todos com base na experiência vital que nos proporciona. Por enquanto, a minha é esta!